quarta-feira, 27 de junho de 2012

51) Aviões daqui e dali, tecnologia operacional de vôo

Atlântico

Quando a VARIG começou a operar em 1927, com o hidroavião Atlântico, sua tecnologia operacional de vôos era compatível com o que a aeronave podia fazer, com o que os pilotos sabiam de aeronáutica, com os recursos que havia em terra e com a mentalidade vigente entre os dirigentes. Tudo se encaixava adequadamente numa era pioneira e primitiva. Não havia outra atividade aeronáutica civil no pais, e nada de melhor se poderia esperar. Os pilotos, por exemplo, não sabiam voar sem visibilidade exterior, mas o avião também não tinha instrumental para isso, nem havia recursos de apoio em terra. Tudo enfim compatível e bem inter-relacionado.

Alguns anos mais tarde a empresa estava quase falida, o avião não existia mais, e o recurso para não cessar a única atividade aérea civil do pais, foi pleitear o apoio do Governo Estadual, que colaborou comprando aviões que passaram a ser participação acionária na nova empresa. Mas esses aviões eram terrestres e precisavam de pistas de pouso e decolagem para operar, e elas não existiam no RGS. Então, à escolha da Direção da RG, foram escolhidos alguns pontos do Estado onde haveria interesse em escalar para arrecadar eventuais passageiros com a coragem necessária para enfrentar a nova e atemorizante aventura de cruzar os céus do Rio Grande.
Tudo era naturalmente primitivo nessas eras: Os aviões eram primitivos, os pilotos eram primitivos, as pistas de pouso eram primitivas; tudo compatível, não havendo, aparentemente, aspirações de maiores grandezas, ou evoluções. Otto Ernst Meyer teve um imenso, incalculável, mérito: ele capitalizou sua elementar e precária experiência aeronáutica (fora observador de artilharia a bordo de rudimentares aviões alemães, na primeira guerra) e teve a extraordinária capacidade de projetar mentalmente aqueles poucos vôos que fizera como artilheiro até a fantasiosa idéia de que aquelas máquinas poderiam transportar pessoas pelos céus em troca de uma remuneração que transformaria a iniciativa numa incipiente mas promissora indústria! Que gigante mental foi esse homem!

A grandiosidade pioneira de Meyer, porem, estacionou nos anos 1930 e começo de 1940. Ele sonhava com a vitória da Alemanha na segunda guerra, e o surgimento de gloriosos aviões de transporte fabricados pelos vitoriosos alemães, e acessíveis a uma empresa como sua VARIG. Em seu gabinete, Meyer ostentava quadros com gravuras fantasiosas de futuros aviões alemães, tais como Heinkels, Focke-wulfs, Dorniers, que ele teve ocasião de mostrar-me, orgulhoso face ao futuro que esperava. Porem, as limitações impostas pela própria guerra e outras mais, tiveram o efeito de “cristalizar” as ambições de Meyer dentro das fronteiras do Rio Grande do Sul, até um ponto em que, tal como um atleta que passa às mãos de um sucessor a tarefa de continuar e vencer a corrida de revezamento, ele entregou o poder a outro. Foi a isso levado por pelo menos dois fatores: Primeiro, o fato de que não se permitia mais a presença de alemães na direção de empresas brasileiras, e segundo porque ele estava sofrendo de uma severa perda de audição que o levou à surdez total em pouco tempo. Cheguei a vê-lo, nos últimos dias de sua administração, acompanhado de sua esposa, que tomava nota de tudo que alguém lhe dizia e depois mostrava os escritos a ele, que os lia e então respondia.

Foram dias difíceis e angustiosos, que terminaram com a presença de Ruben Berta à testa da empresa. Berta jovem, ativo, trabalhador e também idealista, apesar de algumas limitações (e quem não as tem?), resolveu empurrar a VARIG para a frente, com a colaboração de seus auxiliares. Precisava fazer pelo menos duas coisas preliminares: conseguir outros aviões e fazer a empresa evoluir tecnológica e administrativamente.

A esperança de conseguir novos e belos aviões alemães estava indo águas abaixo, pois a Alemanha estava perdendo a guerra. A VARIG teria que “arranjar” alguns aviões um pouquinho melhores do que os velhos F-13, onde fosse possível dadas as circunstâncias, e tratar de aprender uma tecnologia mais avançada de vôo do que a sua, na qual os aviões voavam exclusivamente por contato visual com o terreno, e os pilotos usando apenas uma bússola magnética para sua navegação. Nessa época, em 1941 quando eu ainda não era funcionário da VARIG, tive que viajar ao Rio de Janeiro, onde iria começar um curso para instrutor de vôo, o que foi o início de minha carreira aeronáutica. Pois essa viagem de POA ao RIO foi feita num Douglas DC-2 da PANAIR DO BRASIL (meu pai me presenteara com a passagem!), avião antecessor do famoso DC-3, que a PANAIR usava em suas linhas pelo Brasil, voando por instrumentos e utilizando rádio-goniometria na navegação, enquanto a VARIG se arrastava modestamente pelo RGS, voando por contato com o solo, numa altitude pouco acima do lombo das vacas.

Lá por 1943 a Diretoria da RG conseguiu comprar, creio que no Rio de Janeiro, três aviões esquisitos, com a intenção de colocá-los em suas linhas gauchas (e uma para Montevidéo, que foi a primeira linha da RG para fora do RGS). Esses aviões eram também primitivos e na minha opinião nada acrescentaram de novo aos vôos praticados na RG, exceto o fato de que eram multimotores. Um desses aviões, um FIAT fabricado na Itália sob encomenda de um parente de Mussolini (pelo que se dizia) e que eu nunca soube como viera parar no Brasil, era trimotor (três pequenos motores de 4 cilindros) e tinha manetes de gás que aceleravam os motores empurrando-as para trás, ao invés do convencional e universal de acelerar para a frente. O projetista italiano que fez isso deveria receber um prêmio pela originalidade, pois certamente esse foi o único avião fabricado até hoje em todo o mundo, desde a época do 14 Bis, com manetes acelerando os motores para trás. Além disso, esse avião tinha vários tanques de gasolina dentro das asas, que só poderiam ser utilizados abrindo-se algumas torneiras que existiam no soalho da cabine, debaixo das poltronas dos passageiros. Assim sendo, toda vez que a gente precisava usar a gasolina de um desses tanques, era necessário passar para a cabine traseira, ajoelhar-se no chão e procurar a respectiva torneira por entre as pernas dos pacientes e tolerantes passageiros. Quando se tratava de uma mulher bonita, o esforço era compensado com a necessidade de enfiar a cabeça debaixo de sua saia (ainda bem!).

Esses aviões esquisitos, afinal, foram vendidos para alguém no Rio de Janeiro. Constou, sujeito a confirmação, que estão repousando no fundo da Baía da Guanabara.

Um dia (lá pelo ano 1944), finalmente a VARIG deu um definitivo e fundamental passo rumo à adoção de nova tecnologia de vôo. Berta conseguiu comprar da PANAIR dois aviões Lockheed Electra 10E que a subsidiária da Pan American usara em suas linhas e agora os substituía por aviões maiores, mais velozes e com mais capacidade (os Lodestar). Passamos a operar os Electra com grande entusiasmo, voando por instrumentos e usando a rádio goniometria para navegar e para aproximações das pistas com mau tempo. Foi um salto que a RG dava no seu preparo para o futuro, saindo inclusive do RGS para os estados de Santa Catarina e Paraná.
Afinal terminou a 2ª. Guerra Mundial com a esperada vitória dos aliados, e isso provocou um dos acontecimentos mais importantes para o transporte aéreo mundial. Refiro-me à venda por preços razoáveis das centenas e centenas de aviões de transporte e suas peças, pertencentes à Força Aérea dos USA, que haviam sido construídos aos milhares durante a guerra, para serem utilizados como transportadores de suprimentos e tropas em todas as frentes de combate aliadas. Eram principalmente Douglas C-47, a versão cargueira do excelente DC-3, que foram vendidos a praticamente todas as empresas de transporte aéreo mundiais, e também a muitas outras novas empresas que surgiram justamente com a disponibilidade desses novos e excelentes aviões e respectivas peças que a USAF tinha em abundância.

A VARIG, modesta e timidamente, comprou apenas duas dessas aeronaves, inicialmente, adquirindo mais tarde outras mais. A compra da VARIG foi tardia, de sorte que quando chegamos à Base de Parnamirim, em Natal, RN, só lá estavam nossos dois aviões à nossa espera. Todos os demais já tinham sido levados por outros compradores (Só a título de comentário: Durante a guerra, as fábricas americanas enviavam seus aviões a Natal para dali atravessarem o Atlântico rumo às frentes de luta. A Base de Parnamirim havia sido, como outras mais no litoral brasileiro, arrendada aos USA, dada à sua posição estratégica para a travessia oceânica. E sabem quantos aviões ali chegavam por dia? Mais de 400!).
A compra dos C-47 e C-46 pela VARIG deu novo e importante impulso à nova tecnologia na empresa. Abrimos novas linhas e de repente estávamos voando por boa parte do Brasil, com bom aproveitamento financeiro. Nosso serviço em geral melhorou bastante, equiparando-se logo ao das melhores empresas. O atendimento dos clientes a bordo, com o fornecimento de refeições e bebidas, o que viria a tornar-se um apanágio da empresa, havia começado modestamente com os Eletrinhas, servindo-se aos passageiros uma caixa de papelão com sanduíches, ovo cozido e uma perna de frango assada. Não havia Comissário/a nesses aviões dada à sua exigüidade. Com a chegada dos DC-3, foi introduzido o Comissário (inicialmente só homens) a bordo e o serviço em geral melhorado, a caminho da excelência inigualável que viria a ser anos mais tarde.

E assim continuaram as coisas durante muitos anos, a empresa crescendo e tornando-se um padrão de qualidade e eficiência, com tecnologia sempre se aprimorando à medida que novos e mais evoluídos aviões apareciam, substituindo os que iam ficando obsoletos. A evolução e o crescimento da empresa, pois, sempre estiveram ligados, assim à nova e melhor tecnologia que novos aviões apresentavam. Essa evolução tecnológica imensa que os aviões sofreram através dos anos, fez com que seu preço fosse aumentando gradativamente até o ponto em que não se podia mais comprá-los. Surgiu então o expediente de arrendá-los. Empresas de arrendamento atuam como intermediárias entre as fábricas e os operadores, e assim a coisa vai andando, tendo o transporte aéreo se tornado algo imprescindível para o mundo de hoje. Teria sido esse o sonho de Otto Meyer? Talvez; nunca se poderá saber ao certo!

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