segunda-feira, 4 de junho de 2012

13) O vazamento de “gasolina” no Muniz 9


O “Chuí”

Nos anos 1942/43, a VARIG voava exclusivamente no Rio Grande do Sul, mas havia desejos de expandir-se para outras regiões. A dificuldade eram os aviões, que estavam velhos e muito limitados. Nós mantínhamos ótimas relações com a Condor que voava por todo o Brasil com aviões JU-52 e mais tarde Focke-Wulf 200, excelentes quadrimotores, o “Abaitará” e o “Arumani”, nomes indígenas que os alemães haviam escolhido. A VARIG representava a Condor no RGS, e havia ampla cooperação entre a grande empresa do norte e a pequenina do sul. Como ao norte do RGS era território da Condor e a VARIG era muito ligada a essa empresa alemã, não se cogitava de expandir para os territórios da aliada, para não haver uma concorrência desleal (mas ineficaz, convenhamos!). Assim a VARIG cogitou de expandir-se para o sul, ou seja, o Uruguay. Comprou então dois aviões usados no Rio de Janeiro, um inglês De Havilland Dragon Rapid, um bimotor biplano com estrutura de madeira e todo revestido de tecido, e um trimotor de fabricação italiana, da marca Fiat, ambos para seis passageiros e dois tripulantes. Esses aviões eram cheios de limitações e muito diferentes do que já havia em POA, porem as poucas tripulações que os voaram adaptaram-se às suas diferentes características. Com o De Havilland (que não era nem Dragon nem Rapid), inaugurou-se uma linha para Montevideo, transportando um máximo de seis passageiros. Pousava-se no aeródromo de Melilla na capital uruguaia, pois o moderno aeroporto de Carrasco ainda não estava pronto.

Esse avião continuou voando pelo interior do Rio Grande e para Montevideo por algum tempo até que seus motores Gipsy Six de 200 HP começaram a precisar de urgentes reformas, o que não se podia fazer, pois não havia motor de reserva. Seria necessário paralisar o avião para poder fazer a reforma dos motores.

Nesse ponto, porem, surgiu uma provável solução: Tinha havido no Brasil uma fábrica de aviões biplanos, pertencente e orientada por um Brigadeiro reformado de nome Muniz. Ele fabricara dois modelos que tinham sido aprovados e distribuídos pelos aeroclubes do país: o Muniz 7 e o Muniz 9. Este último maior e mais pesado, tinha um motor (vejam só a coincidência!) De Havilland Gipsy Six de 200 HP, igual aos de nosso aviãozinho que tivera o nome de Chuí. A fábrica fechara, não havia mais nem aviões nem motores para comprar, exceto o protótipo da série Muniz 9, com um motor que nos interessava, quase novo, depositado há alguns anos num hangar pequeno que fora construído na cabeceira de uma pistinha muito curta, no Iate Clube do Rio, ao tempo em que voavam por ali pequenos aviões importados, com um motorzinho que fazia um ruído que os habitantes da região interpretaram como sendo “teco-teco”, o que deu o nome ou apelido a todos os aviões de pequeno porte no Brasil, daí em diante.

Pois o amigo e representante da VARIG no Rio de Janeiro, nesse tempo, um gaúcho chamado Paulo Regius, descobriu o avião cheio de teias de aranha no tal Clube e o comprou, sabe-se lá de quem. Tratava-se agora de transportar o avião, ou pelo menos seu motor, para POA, a fim de ser instalado no Chuí. A VARIG poderia ter feito isso de navio ou de caminhão, mas decidiram que o avião poderia vir voando, mas quem poderia trazê-lo, arriscando uma viagem longa num avião parado há anos, cheia de riscos imprevisíveis? Eu, ora! Eu mesmo, que voara vários tipos de aviões, e que tinha boas noções de mecânica, pois o avião certamente necessitaria de reparos,

O avião precisava ser removido do local onde estava, pois eu não queria arriscar uma decolagem naquela sub-pista, num avião duvidoso, com elevados mastros de barcos veleiros na cabeceira. Precisávamos levá-lo para o Santos Dumont, mas como? Pois a empresa alemã Condor tinha sua base de manutenção na Ponta do Caju, à margem da Baía da Guanabara. Quando os aviões da Condor eram hidroaviões, eles pousavam n’água e encostavam na Ponta do Caju, onde eram içados para a terra. Porem com o aparecimento de aeródromos pelo menos nas capitais do país, os JU-52 começaram a ser transformados em aviões terrestres, com rodas. Então, para levá-los à Base de Manutenção do Caju, a Condor construiu ou comprou um enorme guindaste flutuante, impulsionado por seu próprio motor, que encostava no Santos Dumont, içava um avião qualquer (inclusive os grandes Focke-Wulf 200, como tive oportunidade de ver) e levava-o, navegando pelas águas da Baía, até a Ponta do Caju.

Então Paulo Regius falou com o pessoal da Condor e eles nos emprestaram o guindaste que foi até o Clube Náutico, içou nosso Muniz 9 e depositou-o num canto do Santos Dumont, onde não atrapalhava o movimento.

Resolvido esse problema, comecei a trabalhar no avião, revisando-o e consertando os pequenos defeitos que tinha. Entre outras coisas, tive que remover os três tanques de gasolina que o avião tinha atrás do motor, e levá-los a uma oficina para que fossem soldados, pois vazavam gasolina. Foram alguns dias de trabalho, mas afinal o avião ficou pronto para o vôo. Faltava mais uma coisa: naquele tempo, o DAC exigia uma licença especial do piloto, para cada tipo de avião que fosse pilotar. Eu não tinha licença para o Muniz 9 e por isso procurei na sede do DAC, ali mesmo no Santos Dumont, o velho conhecido Cel. Av. Azevedo, que chefiava as operações do DAC, e expus meu problema. Ele era um homem extremamente cordial e cooperativo, a quem já tínhamos recorrido quando cursávamos o Curso de Monitores do Aero Clube do Brasil, sempre que surgia uma dificuldade, obtendo sempre prontas e necessárias providências.

Pois o Cel. Azevedo ouviu minha exposição, abriu uma gaveta de onde retirou um velho capacete de couro e um par de óculos de vôo, dizendo: “Vamos lá! Você não precisaria de um cheque, pois fez aquele belo curso, mas de qualquer modo eu gostaria de dar um vôozinho!” Ele fora oficial da antiga Aviação Naval, e adorava voar.

Saímos para o campo, fizemos o vôo com várias manobras e eu fui licenciado no Muniz 9. Agradeci penhorado ao Coronel, de quem guardo uma saudosa lembrança, pois tive ocasião de encontrá-lo várias vezes, sempre com resultados muito bons, inclusive quando ele foi administrador do aeroporto de Congonhas, em SAO, e eu administrava a REAL.

Como de outras vezes, eu me hospedara na Pensão Cardoso, no Catete, que pertencia aos pais de um colega e amigo, Arsênio. Era barata, confortável, bem situada e cheia de amigos. Quem a administrava era a mãe do Arsênio, pois o marido, paraguaio, só tocava violão e cuidava de seus galos de rinha. A mãe do Arsênio preparou-me um pacote de sanduíches à guisa de almoço na viagem, e eu lá me fui para o Santos Dumont apanhar meu avião que estava abastecido e pronto. Lá chegando deparei-me com Arsênio que estava por ali e falou comigo: “Para onde vais, Bordini?” – resposta: “vou para Porto Alegre, levando esse avião.” – disse ele: “podes dar-me uma carona? Vou visitar uns amigos e voltarei com algum colega da Cruzeiro ou da Panair.”

Concordei com o colega, embarcamos, ele na nacele da frente e eu na de trás pilotando, decolamos e subimos contornando o Pão de Açúcar e tomando o rumo do litoral, rumo a Santos que era nossa primeira escala. A rota pelo litoral nos fazia passar sobre a enorme Baía onde está a Ilha Grande, antigo presídio. Isso nos obrigava a sobrevoar grandes extensões de mar, o que representava um risco num avião monomotor e desconhecido.  De qualquer modo, cortei caminho por sobre o mar, e quando estava mais ou menos na metade da extensão de água, começou subitamente uma enxurrada de líquido que poderia ser gasolina, vinda da frente do avião. Pensei logo nos tanques que eu havia consertado, e que provavelmente estariam vazando combustível. Isso representava não só o risco de incêndio no avião, como também a inexorável pane de motor por falta de combustível, caso os tanques se esgotassem. Estávamos sobre o mar, e a melhor chance de um pouso de emergência era na praia do continente, que aparecia à minha direita, mas um bocado longe. Aproei de qualquer modo nessa direção e fiquei torcendo para que o motor não parasse. Arsênio, à frente, não mostrava a menor preocupação. Nós não tínhamos possibilidade de comunicar-nos e eu fiquei surpreso pelo fato de que parecia não ter notado o ocorrido.

Chegamos sobre o litoral, e nada de novo acontecera. O motor funcionava redondo, os instrumentos indicavam que tudo estava normal, e por isso resolvi seguir o litoral na esperança de que pudéssemos chegar a Santos a despeito de tudo.

Afinal chegamos a Santos, onde pousei sem problemas, lá encontrando o pessoal da Shell que nos abasteceria e que fora avisado pelo eficiente Regius. Pude verificar que os tanques do avião estavam intactos e que o consumo de gasolina estava normal. Então de onde viera aquele vazamento que me encharcara e me obrigara a cheirar o líquido para identificá-lo, o que não deu resultado, pois havia muito vento e meu olfato nunca fora grande coisa!

Procurei então o Arsênio, a quem perguntei: “Não notaste o vazamento de um líquido, abundante, quando estávamos na Baía de Angra dos Reis?”, ao que ele respondeu: “Ah, sim! Fui eu que mijei! estava apertado e resolvi mijar no solo da cabine. Porque?

Nem respondi. Afastei-me exultante, muito satisfeito em saber que meu avião estava OK, e que poderia continuar a viagem tranquilamente. Bendito mijo do Arsênio! Mijo não pega fogo e não faz falta ao motor! Abastecemos e seguimos viagem para Florianópolis, onde pernoitamos nas excelentes instalações da antiga aviação naval, com ótimas camas, água quente para o banho e comida muito boa, Lá novo reabastecimento pela Shell e a decolagem para Porto Alegre, aonde chegamos sem novidades. Esperavam-nos no aeroporto minha esposa Cecília, meu filho Sérgio e – surpreendam-se – Ruben Berta em pessoa que me cumprimentou pelo sucesso do vôo.

O Muniz 9 foi para o hangar onde tiraram-lhe o motor que foi aproveitado no biplano Chuí. A carcaça certamente foi parar no ferro-velho. Os aviões Chuí e seu companheiro trimotor Jacuí, voaram ainda algum tempo nas linhas da VARIG, a despeito da falta de peças. O Jacuí era um avião muito esquisito, com asas grossas que o faziam estolar com qualquer velocidade, e que tinha coisas inusitadas como manetes de gás acelerando para trás e seletoras de tanques de gasolina (vários!) situadas no soalho da cabine de passageiros, sob suas poltronas, de sorte que quando se queria trocar de tanque tinha-se que tirar uma correntinha que separava a cabine de passageiros da de comando, passar as pernas por cima dos assentos, e ajoelhar-se ao lado de um passageiro ou passageira (ainda bem!) enquanto se acionava a torneira por entre as pernas do mesmo ou da mesma. Por incrível que pareça ninguém reclamava, pois certamente achavam que isso fazia parte daquela coisa misteriosa que era voar de um lugar para outro.

Esses dois aviões, o Chuí e o Jacuí, foram vendidos para alguém no Rio de Janeiro, e ao que consta repousam hoje no fundo da Baía da Guanabara, o que não sei se é verdade. Mas é possível, pois os aviões eram matreiros e na minha opinião só gente experiente como nós, peritos na aviação “arco e flecha”, é que podíamos voar com sucesso aquelas pseudo-aeronaves.

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