terça-feira, 5 de junho de 2012

15) Emergência em Guarujá

C-47 e C-46

Em fins da década dos  anos 40, eu voava nos comando dos aviões Douglas C-47 que a VARIG, como outras empresas, havia comprado como sobra de guerra, da Força Aérea dos USA. Eram excelentes aviões e nós os pilotos gostávamos muito deles. Nós já fazíamos a linha POA-SÃO-RIO, pois a VARIG deixara de ser representante da então Cruzeiro do Sul devido a um desentendimento entre Berta e o Presidente da Cruzeiro, que era um antigo advogado da ex-Condor. Quando o Brasil declarara guerra ao eixo Roma-Berlin, tudo que era de origem alemã ou italiana fora posto sob suspeita e muitas prisões haviam sido feitas sob a acusação de nazismo, inclusive dos diretores da Condor, que eram alemães e que foram acusados (eu diria que injustamente) de espionagem. De acordo com um artigo publicado pelo “O Jornal”, Chateaubriand acusava Bento Ribeiro, o tal advogado da ex-Condor, de ter convencido os alemães na cadeia a transferir-lhe a posse da Condor mediante a promessa de liberá-los com sua suposta influência junto às autoridades. Na realidade, o que aconteceu é que de repente surge das cinzas da Condor uma nova empresa, a Cruzeiro do Sul, presidida e de posse de Bento Ribeiro. Essa empresa passou a operar com os aviões, as linhas e o pessoal da antiga Condor, que desaparecera, e os alemães, ao que constou, continuaram na cadeia pelo menos por algum tempo.

Quando Berta, em POA, leu o artigo de Chatô, ficou indignado achando que não era verdade, e partiu para o Rio de Janeiro para convencer o amigo Bento Ribeiro a desmentir a acusação, no que não teve sucesso. Em conseqüência, houve um rompimento entre os dois e a VARIG deixou de representar a agora Cruzeiro no RGS, passando então a operar na linha para SÃO e RIO, com os novos aviões recém adquiridos.

Um dia, portanto eu voava para o RIO via SÃO, com o avião cheio de passageiros. Até o Paraná o vôo foi tranqüilo e com bom tempo. Daí em diante o tempo foi piorando, e quando cheguei sobre Congonhas, em SÃO, as condições eram bem ruins, com chuva, nevoeiro, turbulência e tetos sobre a pista muito baixos. Fiz o procedimento padrão de descida por instrumentos, apoiado no rádio-farol SP que havia ao lado da pista, e fui descendo na reta final para pegar contato visual com a pista e pousar. Desci abaixo dos mínimos permitidos e mesmo assim não consegui enxergar a pista. Arremeti e subi para fazer nova tentativa, também sem resultado. Nesse ínterim, o aeroporto foi interditado para pousos e decolagens, por extremo mau tempo.

Subi de novo para a altitude de segurança e pensei em minhas alternativas, que eram Cumbica, ali perto, e Santos Dumont no RIO. Na época Cumbica era uma base militar, com uma pista modesta que se transformou anos mais tarde no aeroporto de Guarulhos. Não existia outra boa atual alternativa, que é Viracopos, em Campinas. Tentei uma descida em Cumbica, mas também o mau tempo impediu o pouso e o aeroporto foi fechado. Eu não tinha mais gasolina para seguir ao Rio de Janeiro, onde o tempo estava bom, pois naquele tempo a Diretoria de Operações da RG era muito falha em suas atividade técnicas, e as tabelas de combustível que haviam sido elaboradas não previam combustível para alcançar as alternativas mais distantes. Era tudo mais ou menos improvisado, e nós recém estávamos executando vôos por instrumentos, nos novos aviões, com, inclusive, falta de apoio meteorológico.

Fiquei assim, “no mato sem cachorro”, sem ter para onde ir e preocupado com a segurança de meus passageiros que ali estavam, sem saber de nada e confiantes. De repente, lembrei-me da pistinha de Guarujá, no litoral paulista, uma pequena base da FAB, onde eu pousara quando levara a POA aquele biplano Muniz 9. Era uma pista de dimensões reduzidas para meu avião, sem apoio de rádio, mas era melhor do que um pouso de emergência em qualquer lugar, às cegas. Havia na cidade de Santos uma estação de rádio, que eu sintonizei em meu goniômetro e que serviria para eu saber que ultrapassara a serra (de 800 m de altitude) onde se acha Congonhas. Segui em direção à estação, que não distava mais do que uns 50 Km, bloquei-a e então enfiei o nariz do avião para baixo, mar a dentro, para obter o necessário vôo visual. Afinal consegui contato com a superfície do mar a uns duzentos metros de altitude, e fiz a volta em direção à costa, deixando a estação à esquerda e aproando a ilha de Guarujá, que nessa época não era ligada a Santos por uma ponte, como hoje, e cujo acesso era via “ferry-boat” em determinados horários.

Consegui afinal divisar a pistinha da Base, e lá pousei com grande alívio, apesar do transtorno que isso significava em nossa linha. Fomos recebidos por uma comissão da FAB, chefiada pelo Oficial de Dia, todos muito corteses e cooperativos. Nossos passageiros nessas alturas estavam surpresos e intrigados, pois esperavam estar em Congonhas e se achavam no litoral paulista, muito longe de seus projetados destinos. Consegui, no entanto, explicar-lhes o que havia acontecido e que era melhor estarem ali do que no cemitério. Tínhamos um passageiro a bordo que era velho amigo de Berta e da VARIG em geral, o Dr. Fernando Osório, fazendeiro da região de Pelotas, que tinha grande traquejo social, e que incumbiu-se de lidar com os passageiros, levando-os com a lancha gentilmente emprestada pelo Oficial de Dia da FAB, para a cidade de Santos, onde foram acomodados num hotel que tinha uma boate, por conta da VARIG.

Eu tinha que providenciar o abastecimento do avião, para podermos seguir a Congonhas no dia seguinte, caso o tempo permitisse, pois os tanques de meu avião estavam praticamente vazios. A Base da FAB, porem, não tinha a gasolina que eu necessitava e a solução, assim, era recorrer à Shell em SÃO. Depois de muitas tentativas, consegui a duras penas telefonar para a Gerência da VARIG em SÃO. Isso porque, telefonar no Brasil nessa época era como enfrentar um dos trabalhos de Hércules; era quase impossível! Mas, enfim, consegui falar com o colega e amigo Hélio Smidt que era sub-gerente em SÃO, e que alguns anos mais tarde trabalharia comigo na administração da nova REAL, e que ainda mais tarde viria a ser Presidente da VARIG com bastante sucesso. Falando com Hélio pelo telefone, expliquei-lhe a situação e pedi-lhe que entrasse em contato com a Shell para que transportassem a Santos seis tambores de 200 litros cada, da gasolina que eu precisava. Hélio esbravejou contra essa missão um tanto árdua e imprevista, mas eu fiz-lhe ver que era preferível isso do que lidar com um acidente cheio de cadáveres, com o que ele se aquietou.

A gasolina afinal chegou a Santos, com o Hélio, o caminhão encostou à margem do porto, os tambores foram jogados n’água (e flutuaram, o que me surpreendeu, pois apesar de saber que a densidade da gasolina era menor do que a da água, nunca imaginara que os pesados tambores flutuassem). Os tambores foram amarrados um no outro e rebocados até a ilha onde estava o avião, pela lancha potente da Base Aérea. Os soldados carregaram os tambores e abasteceram o avião, numa excelente demonstração de colaboração.

No dia seguinte embarcamos os passageiros que estavam conformados com o imprevisto, e seguimos para o aeroporto de Congonhas, onde pousamos sem problemas pois o tempo melhorara. Completei o vôo indo até o RIO e no mesmo dia retornei a POA sem maiores dificuldades. Na chegada, procurei a autoridade de Operações e consegui fazer com que alterassem as tabelas de gasolina, de sorte a que os aviões tivessem autonomia para ir à  alternativa mais distante e ainda uma certa folga de combustível. Com essas providências de aperfeiçoamento tecnológico e de administração, para as quais eu e muitos outros contribuímos, é que a VARIG, de uma pequeníssima e primitiva empresa de transportes aéreos dos anos 20, 30 e 40, foi gradativamente se tornando a grande e poderosa empresa que chegou a ser, na época a mais importante “airline” da América Latina, para orgulho de todos nós.

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