quarta-feira, 27 de junho de 2012

51) Aviões daqui e dali, tecnologia operacional de vôo

Atlântico

Quando a VARIG começou a operar em 1927, com o hidroavião Atlântico, sua tecnologia operacional de vôos era compatível com o que a aeronave podia fazer, com o que os pilotos sabiam de aeronáutica, com os recursos que havia em terra e com a mentalidade vigente entre os dirigentes. Tudo se encaixava adequadamente numa era pioneira e primitiva. Não havia outra atividade aeronáutica civil no pais, e nada de melhor se poderia esperar. Os pilotos, por exemplo, não sabiam voar sem visibilidade exterior, mas o avião também não tinha instrumental para isso, nem havia recursos de apoio em terra. Tudo enfim compatível e bem inter-relacionado.

Alguns anos mais tarde a empresa estava quase falida, o avião não existia mais, e o recurso para não cessar a única atividade aérea civil do pais, foi pleitear o apoio do Governo Estadual, que colaborou comprando aviões que passaram a ser participação acionária na nova empresa. Mas esses aviões eram terrestres e precisavam de pistas de pouso e decolagem para operar, e elas não existiam no RGS. Então, à escolha da Direção da RG, foram escolhidos alguns pontos do Estado onde haveria interesse em escalar para arrecadar eventuais passageiros com a coragem necessária para enfrentar a nova e atemorizante aventura de cruzar os céus do Rio Grande.
Tudo era naturalmente primitivo nessas eras: Os aviões eram primitivos, os pilotos eram primitivos, as pistas de pouso eram primitivas; tudo compatível, não havendo, aparentemente, aspirações de maiores grandezas, ou evoluções. Otto Ernst Meyer teve um imenso, incalculável, mérito: ele capitalizou sua elementar e precária experiência aeronáutica (fora observador de artilharia a bordo de rudimentares aviões alemães, na primeira guerra) e teve a extraordinária capacidade de projetar mentalmente aqueles poucos vôos que fizera como artilheiro até a fantasiosa idéia de que aquelas máquinas poderiam transportar pessoas pelos céus em troca de uma remuneração que transformaria a iniciativa numa incipiente mas promissora indústria! Que gigante mental foi esse homem!

A grandiosidade pioneira de Meyer, porem, estacionou nos anos 1930 e começo de 1940. Ele sonhava com a vitória da Alemanha na segunda guerra, e o surgimento de gloriosos aviões de transporte fabricados pelos vitoriosos alemães, e acessíveis a uma empresa como sua VARIG. Em seu gabinete, Meyer ostentava quadros com gravuras fantasiosas de futuros aviões alemães, tais como Heinkels, Focke-wulfs, Dorniers, que ele teve ocasião de mostrar-me, orgulhoso face ao futuro que esperava. Porem, as limitações impostas pela própria guerra e outras mais, tiveram o efeito de “cristalizar” as ambições de Meyer dentro das fronteiras do Rio Grande do Sul, até um ponto em que, tal como um atleta que passa às mãos de um sucessor a tarefa de continuar e vencer a corrida de revezamento, ele entregou o poder a outro. Foi a isso levado por pelo menos dois fatores: Primeiro, o fato de que não se permitia mais a presença de alemães na direção de empresas brasileiras, e segundo porque ele estava sofrendo de uma severa perda de audição que o levou à surdez total em pouco tempo. Cheguei a vê-lo, nos últimos dias de sua administração, acompanhado de sua esposa, que tomava nota de tudo que alguém lhe dizia e depois mostrava os escritos a ele, que os lia e então respondia.

Foram dias difíceis e angustiosos, que terminaram com a presença de Ruben Berta à testa da empresa. Berta jovem, ativo, trabalhador e também idealista, apesar de algumas limitações (e quem não as tem?), resolveu empurrar a VARIG para a frente, com a colaboração de seus auxiliares. Precisava fazer pelo menos duas coisas preliminares: conseguir outros aviões e fazer a empresa evoluir tecnológica e administrativamente.

A esperança de conseguir novos e belos aviões alemães estava indo águas abaixo, pois a Alemanha estava perdendo a guerra. A VARIG teria que “arranjar” alguns aviões um pouquinho melhores do que os velhos F-13, onde fosse possível dadas as circunstâncias, e tratar de aprender uma tecnologia mais avançada de vôo do que a sua, na qual os aviões voavam exclusivamente por contato visual com o terreno, e os pilotos usando apenas uma bússola magnética para sua navegação. Nessa época, em 1941 quando eu ainda não era funcionário da VARIG, tive que viajar ao Rio de Janeiro, onde iria começar um curso para instrutor de vôo, o que foi o início de minha carreira aeronáutica. Pois essa viagem de POA ao RIO foi feita num Douglas DC-2 da PANAIR DO BRASIL (meu pai me presenteara com a passagem!), avião antecessor do famoso DC-3, que a PANAIR usava em suas linhas pelo Brasil, voando por instrumentos e utilizando rádio-goniometria na navegação, enquanto a VARIG se arrastava modestamente pelo RGS, voando por contato com o solo, numa altitude pouco acima do lombo das vacas.

Lá por 1943 a Diretoria da RG conseguiu comprar, creio que no Rio de Janeiro, três aviões esquisitos, com a intenção de colocá-los em suas linhas gauchas (e uma para Montevidéo, que foi a primeira linha da RG para fora do RGS). Esses aviões eram também primitivos e na minha opinião nada acrescentaram de novo aos vôos praticados na RG, exceto o fato de que eram multimotores. Um desses aviões, um FIAT fabricado na Itália sob encomenda de um parente de Mussolini (pelo que se dizia) e que eu nunca soube como viera parar no Brasil, era trimotor (três pequenos motores de 4 cilindros) e tinha manetes de gás que aceleravam os motores empurrando-as para trás, ao invés do convencional e universal de acelerar para a frente. O projetista italiano que fez isso deveria receber um prêmio pela originalidade, pois certamente esse foi o único avião fabricado até hoje em todo o mundo, desde a época do 14 Bis, com manetes acelerando os motores para trás. Além disso, esse avião tinha vários tanques de gasolina dentro das asas, que só poderiam ser utilizados abrindo-se algumas torneiras que existiam no soalho da cabine, debaixo das poltronas dos passageiros. Assim sendo, toda vez que a gente precisava usar a gasolina de um desses tanques, era necessário passar para a cabine traseira, ajoelhar-se no chão e procurar a respectiva torneira por entre as pernas dos pacientes e tolerantes passageiros. Quando se tratava de uma mulher bonita, o esforço era compensado com a necessidade de enfiar a cabeça debaixo de sua saia (ainda bem!).

Esses aviões esquisitos, afinal, foram vendidos para alguém no Rio de Janeiro. Constou, sujeito a confirmação, que estão repousando no fundo da Baía da Guanabara.

Um dia (lá pelo ano 1944), finalmente a VARIG deu um definitivo e fundamental passo rumo à adoção de nova tecnologia de vôo. Berta conseguiu comprar da PANAIR dois aviões Lockheed Electra 10E que a subsidiária da Pan American usara em suas linhas e agora os substituía por aviões maiores, mais velozes e com mais capacidade (os Lodestar). Passamos a operar os Electra com grande entusiasmo, voando por instrumentos e usando a rádio goniometria para navegar e para aproximações das pistas com mau tempo. Foi um salto que a RG dava no seu preparo para o futuro, saindo inclusive do RGS para os estados de Santa Catarina e Paraná.
Afinal terminou a 2ª. Guerra Mundial com a esperada vitória dos aliados, e isso provocou um dos acontecimentos mais importantes para o transporte aéreo mundial. Refiro-me à venda por preços razoáveis das centenas e centenas de aviões de transporte e suas peças, pertencentes à Força Aérea dos USA, que haviam sido construídos aos milhares durante a guerra, para serem utilizados como transportadores de suprimentos e tropas em todas as frentes de combate aliadas. Eram principalmente Douglas C-47, a versão cargueira do excelente DC-3, que foram vendidos a praticamente todas as empresas de transporte aéreo mundiais, e também a muitas outras novas empresas que surgiram justamente com a disponibilidade desses novos e excelentes aviões e respectivas peças que a USAF tinha em abundância.

A VARIG, modesta e timidamente, comprou apenas duas dessas aeronaves, inicialmente, adquirindo mais tarde outras mais. A compra da VARIG foi tardia, de sorte que quando chegamos à Base de Parnamirim, em Natal, RN, só lá estavam nossos dois aviões à nossa espera. Todos os demais já tinham sido levados por outros compradores (Só a título de comentário: Durante a guerra, as fábricas americanas enviavam seus aviões a Natal para dali atravessarem o Atlântico rumo às frentes de luta. A Base de Parnamirim havia sido, como outras mais no litoral brasileiro, arrendada aos USA, dada à sua posição estratégica para a travessia oceânica. E sabem quantos aviões ali chegavam por dia? Mais de 400!).
A compra dos C-47 e C-46 pela VARIG deu novo e importante impulso à nova tecnologia na empresa. Abrimos novas linhas e de repente estávamos voando por boa parte do Brasil, com bom aproveitamento financeiro. Nosso serviço em geral melhorou bastante, equiparando-se logo ao das melhores empresas. O atendimento dos clientes a bordo, com o fornecimento de refeições e bebidas, o que viria a tornar-se um apanágio da empresa, havia começado modestamente com os Eletrinhas, servindo-se aos passageiros uma caixa de papelão com sanduíches, ovo cozido e uma perna de frango assada. Não havia Comissário/a nesses aviões dada à sua exigüidade. Com a chegada dos DC-3, foi introduzido o Comissário (inicialmente só homens) a bordo e o serviço em geral melhorado, a caminho da excelência inigualável que viria a ser anos mais tarde.

E assim continuaram as coisas durante muitos anos, a empresa crescendo e tornando-se um padrão de qualidade e eficiência, com tecnologia sempre se aprimorando à medida que novos e mais evoluídos aviões apareciam, substituindo os que iam ficando obsoletos. A evolução e o crescimento da empresa, pois, sempre estiveram ligados, assim à nova e melhor tecnologia que novos aviões apresentavam. Essa evolução tecnológica imensa que os aviões sofreram através dos anos, fez com que seu preço fosse aumentando gradativamente até o ponto em que não se podia mais comprá-los. Surgiu então o expediente de arrendá-los. Empresas de arrendamento atuam como intermediárias entre as fábricas e os operadores, e assim a coisa vai andando, tendo o transporte aéreo se tornado algo imprescindível para o mundo de hoje. Teria sido esse o sonho de Otto Meyer? Talvez; nunca se poderá saber ao certo!

terça-feira, 26 de junho de 2012

50) Vamos buscar o Joca?


A escola VAE pertencia à VARIG e atuava em dependências construías na área cedida à VARG pela administração do antigo aeroporto São João, em Porto Alegre. A escola possuía alguns aviões de treinamento e planadores, que eram usados pelos alunos e instrutores. Todas as aeronaves eram de fabricação alemã de antes da IIa Guerra, pois a administração da RG era de origem alemã, com muitas ligações com o país germânico, e na opinião dos Diretores, somente aviões e planadores alemães eram válidos. Mesmo depois de começar a guerra, quando cessou a importação de bens da Europa, não se admitia a compra eventual de material aeronáutico norte-americano, apesar de ser essa a única fonte de tal material, pois a fabricação de aviões no Brasil estava apenas engatinhando.

No começo dos anos 1940, o jornalista Assis Chateaubriand planejou e concretizou o que se chamou de “Campanha Nacional de Aviação”, que seria a criação de uma “consciência aeronáutica” no país, considerando que o futuro transporte aéreo seria muito conveniente num país com a extensão do Brasil, e desprovido de outros meios de transporte adequados. A “Campanha” consistia em doações de recursos financeiros para a compra de pequenos aviões norte-americanos, que seriam doados a escolas de aviação existentes ou a serem formadas por todo o território nacional. Chatô (como era conhecido) pressionava capitalistas ou grandes empresários a doarem o dinheiro, o que acontecia sem dificuldades pois as quantias não eram muito elevadas, e todos temiam a pena ferina de Chatô, em sua rede nacional de jornais.

Pois a Campanha doou um avião à escola VAE, ou porque Chatô não sabia da ojeriza germânica a aviões americanos existente na VARIG/VAE, ou porque tenha querido provocar os alemães deliberadamente. Então o avião foi doado, mas permanecia há meses no fundo de um hangar, cheio de teias de aranha, pois os dirigentes da VAE não queriam recebê-lo.

A coisa estava nesse pé quando, de repente, o Brasil entrou na guerra contra o eixo Roma-Berlin. Houve em vários lugares, mas principalmente nos estados do RGS e de Santa Catarina, onde a influência germânica era considerável, manifestações populares contra o Eixo com quebra-quebra e prisões. Os alemães e teuto-brasileiros começaram a por “as barbas de molho”, e isso aconteceu com a Direção da VARIG. Nas oficinas e nas dependências da VAE, só se falava a língua alemã, até que num dado momento pude testemunhar a presença de Ruben Berta nos hangares, dizendo energicamente que doravante estava proibido falar alemão.

Assim sendo, a Direção da VARIG subitamente “lembrou-se” de que havia um aviãozinho americano (era um Taylorcraft asa alta, monomotor, com cabine fechada e assento para dois, lado a lado), em algum lugar do Brasil e que precisava ser resgatado numa demonstração de que o pessoal da VARIG não era nazista. Ante essa decisão, fui convocado por Otto Ernst Meyer, a autoridade máxima na VARIG daqueles tempos, e me apresentei em seu gabinete no centro da cidade. Disse-me ele que era preciso trazer o avião Taylorcraft, que não se sabia onde estava, e que eu tinha que ir ao Rio de Janeiro falar com Assis Chateaubriand em seu órgão líder da cadeia jornalística, “O Jornal”, na Avenida Rio Branco. Deu-me algum dinheiro para as despesas, o endereço de “O Jornal”, uma carta de apresentação e uma passagem de ônibus para o Rio. Sim, de ônibus, pois achavam que a passagem aérea era muito cara!

Viajei assim num ônibus aberto pela praia (não havia estrada) até Florianópolis (cerca de 19 horas de viagem), onde pernoitei. No dia seguinte fomos ainda no mesmo ônibus, a Curitiba onde trocamos para um ônibus mais confortável e fechado. Embarcou nessa cidade um rapaz simpático que sentou-se ao meu lado e que se destinava também ao Rio de Janeiro, onde ia assumir um posto no Departamento de Aeronáutica Civil. Era piloto Privado, engenheiro e chamava-se Seifert. Foi uma amizade que durou muitos anos e que me foi muito útil anos mais tarde, quando fundei a escola EVAER e o Seifert ocupava um alto cargo no DAC e muito me ajudou, pois era entusiasmado pela idéia.

Pernoitamos mais uma vez, já em São Paulo e afinal depois de alguns dias e muitas horas de viagem chegamos ao Rio. Procurei logo a Pensão Cardoso no Catete, que já conhecia de outras eras. Revi velhos e queridos amigos e no dia seguinte fui ao endereço de “O Jornal” procurar Chateaubriand. Lá me informaram que ele estava viajando, que ninguém sabia nem onde estava nem quando voltaria ao Rio. Chatô tinha comprado um potente avião monomotor bi-plano para 4 ou 5 pessoas um Beechcraft cujo modelo eu creio que foi único no Brasil, e com o mesmo andava por todo lugar onde houvesse pista para pousar, em suas atividades jornalísticas. Ele costumava aparecer subitamente, sem aviso prévio, ficar alguns dias no Rio e de repente partir outra vez para lugar ignorado. Ninguém no local sabia informar-me onde estaria o avião que eu viera buscar. Somente Chatô poderia dizer-me alguma coisa. Não tive pois remédio senão sentar-me no degrau da porta do jornal, saindo só para comer e dormir, por alguns dias até que, afinal, chegou Chatô de súbito, desembarcando de um automóvel e caminhando apressado para as escadas.

Levantei-me de onde estava e o interceptei. Encarou-me com uma certa má vontade, certamente devido ao meu atrevimento; Expliquei-lhe minha missão, e apresentei-lhe a carta que trazia assinada por Meyer. Ele passou rapidamente os olhos pelo documento, assumiu um ar mais rancoroso e disse algo como: “Então você representa aqueles alemães teimosos lá do Sul, que recusaram o avião que lhes foi doado, hein? Teria sido melhor dar para outros!” Tratei de usar minha melhor diplomacia para apaziguar o homem e defender “aqueles alemães” (note-se que naqueles tempos de guerra contra os nazistas, que estavam afundando nossos navios em nossa costa com seus submarinos, chamar de “alemães” era uma grave ofensa!). Chatô demonstrava grande má vontade, e eu vi perigar minha missão, até que, porem, ele notou meu nome na carta e perguntou: “Você é parente do General Bordini?” ao que eu respondi: “Sim, é meu tio, irmão de meu pai!”.

Aí a coisa mudou. Ele conhecia meu tio, de quem era amigo, e de repente eu me tornei simpático e aceitável, ao invés de representante dos supostos nazistas. Ele levou-me para seu gabinete, deu-me os papeis do avião que estavam numa de suas gavetas, e disse-me que o avião estava em São Paulo, no Campo de Marte, aos cuidados do Aeroclube de SAO. Feliz e contente com essa parte da missão cumprida, despedi-me de Chatô e fui para a Pensão Cardoso preparar minha viagem a SAO. Descobri que uma maneira razoável de ir à capital paulista era de trem, pois havia uma “Maria Fumaça” morosa mas barata, que ligava as duas cidades. Despedi-me, pois, dos amigos Cardoso e fui para a estação embarcar no tal trem, cuja viagem foi com o desconforto esperado, temperada por uma passagem dentro de um túnel, que encheu nosso vagão de fumaça a ponto de quase morrermos asfixiados. Ninguém a bordo sabia que a locomotiva encheria o túnel de fumaça e que a fumaça entraria para dentro do vagão se as janelas estivessem abertas. E estavam!

Em São Paulo hospedei-me numa pensão barata perto do Viaduto do Chá, e perto também, por acaso, como descobri depois, da filial local do DAC onde eu teria que encaminhar os papeis da matrícula de meu avião. Fui logo ao Campo de Marte e fiz contato com o pessoal do Aeroclube, onde encontrei não só meu avião, como um colega e amigo do Curso de Monitores que fizéramos juntos no Aeroclube do Brasil, em Manguinhos, em 1941. Foi-me esse amigo de grande ajuda, pois facilitou-me tudo, inclusive a vistoria no avião que fiz perante um oficial da FAB, o qual mandou-me decolar e fazer umas manobras, verificando se tudo estava OK. E não estava, pois o contagiros do motor não funcionava e eu não tinha como ajustar a potência em vôo de cruzeiro. Mas para não atrasar minha partida, disse que tudo estava OK e passei (durante toda a viagem até POA) a ajustar a potência pela velocidade.

Vistoriado, lavado e testado o avião, fui ao DAC local e encaminhei os papeis do avião para obter sua matrícula. A coisa era encaminhada ao RIO, sede do DAC, e de lá vinham de volta os papeis e a matrícula do avião. Isso levava alguns dias, que eu passei aprontando o avião e convivendo com o pessoal do Aeroclube. Como estávamos em guerra, não havia muita gasolina pelo caminho que eu seguiria. Consegui com o Aeroclube duas latas de 18 litros e enchi-as com gasolina ali em Marte, fechando-as com solda de estanho. Coloquei as duas latas cheias sobre o assento do avião do lado direito, e estava pronto para tudo, faltando somente os papeis do avião que estavam com o DAC.

Estava na pensão deitado e lendo um livro, sem nada que fazer, quando fui chamado por um empregado: Havia na portaria alguém que queria falar comigo. Fui até o local e me deparei com o engenheiro chefe do DAC em SAO, que, muito gentilmente, me trazia os papéis do avião com sua matrícula, que haviam chegado do Rio. Ele sabia que eu ansiava por partir e tivera a paciência e a boa vontade de ir até onde eu estava para entregar-me os documentos! Que extraordinária pessoa bondosa e cheia de boa vontade! Nunca esqueci o incidente, mas não guardei o nome do engenheiro. Que pena!

Afinal. Com tudo pronto, decolei do Campo de Marte e tomei uma proa para interceptar o litoral paulista rumo ao sudoeste. O tempo estava bom, mas havia uma camada de nuvens que quase encostava na beirada da serra que antecedia o litoral. Não podia passar para cima das nuvens, pois não tinha nem instrumentos nem referências para tal. Fiquei portanto por baixo da camada, voando rente ao solo, mas afinal passei a serra e me deparei com o belo e deserto litoral paulista, que eu não conhecia. Eu não tinha experiência de navegação aérea. Minhas pouco mais de cem horas de vôo tinham sido adquiridas ao redor de aeroportos. Mas naquele vôo, com boa visibilidade, tratava-se apenas de seguir a costa até minha terra, o que não me pareceu difícil. Segui assim até Paranaguá, onde pousei e abasteci gasolina de uma de minhas latas. Depois decolei rumo a Florianópolis, sempre me deliciando com o panorama litorâneo de meu país. Chegando a Florianópolis, procurei a pista de pouso que eu sabia ser na ponta SW da ilha, e lá pousei e taxiei o avião para junto das instalações da Base Aérea que lá havia e que fora construída pela antiga Aviação Naval. Fui recebido com cordialidade por um Sargento da FAB, a quem disse que pretendia pernoitar, se não houvesse inconveniente, perguntando-lhe como poderia conseguir condução para a cidade, que era bastante distante da Base. Disse-me, então, que eu não precisaria ir à cidade; que eles tinham alojamentos para viajantes com todo o conforto, inclusive banho quente e jantar, e que eu era convidado da FAB para ali ficar e jantar. Meu avião foi abastecido e guardado no hangar, e antes de tomar banho e descansar fui convidado para participar de uma partida de “volley-ball” com os soldados, que estava por começar.

Assim, acolhido por aquela gente tão hospitaleira, joguei volley, tomei banho e jantei magnificamente, pois as instalações eram, realmente excelentes. No dia seguinte despedi-me dos amigos da FAB e decolei rumo a Torres, no RGS. Foi uma viagem com bom tempo, sem qualquer dificuldade. Em Torres pousei e reabasteci o avião, com a ajuda do guarda-campo local, que adorava ajudar um dos raríssimos aviões que por ali passavam. Segui depois para Porto Alegre, mas ao passar por Osório resolvi pousar na pista local, onde ocorria um dos acampamentos de vôo a vela da VAE. Encontrei ali vários amigos e colegas que participavam do simpático acampamento que era hábito a VAE fazer no verão, devido ao vento constante que havia na região e que criava uma corrente ascendente que mantinha os planadores no ar. Meu avião, que se incorporaria à frota da VAE, foi muito admirado e houve muita gente que queria voar nele, mas eu tinha que entregá-lo em POA para a chefia da VARIG e por isso decolei rumo à minha cidade, para completar minha missão. Meus chefes, ao que parece, gostaram do sucesso que eu tivera, uma espécie de “mensagem a Garcia”, mas nada disseram. O avião? Sim, o avião foi batizado com o nome de “Joca” e voou bastante com os alunos da VAE, inclusive comigo como instrutor. Que foi feito dele? Não sei! Mas provavelmente virou sucata!

segunda-feira, 25 de junho de 2012

49) Acontecimentos, ocorrências

Super Constellation Start Up

New York no inverno: um frio terrível, vários graus centígrados abaixo de zero! Caminhava pela cidade devidamente agasalhado, quando soube por um jornal que o navio Queen Elizabeth, o maior do mundo na época, estava no porto. Queria ver o navio e então dirigi-me para lá. Quando cheguei vi que as águas do porto estavam congeladas, com grandes blocos de gelo cobrindo toda a superfície de mar e “espremendo” o grande barco contra o cais.

Tive então a idéia de ser fotografado junto ao casco do mesmo, de pé sobre o gelo. Eu tinha uma câmara fotográfica Yashica e um colega ali junto poderia fotografar-me. A idéia era maluca e perigosa, Eu poderia escorregar e quebrar uma perna, por exemplo, ou o gelo poderia partir-se e eu naufragar nas águas geladas. Porem, com a audácia da juventude e boas condições físicas, consegui descer a amurada até as placas de gelo e com cuidado e lentamente, caminhar até o costado do navio. E aí, então, fui fotografado com a mão enluvada encostada no casco do gigante. Creio que fui a único brasileiro a jamais fazer uma coisa dessas! Que tolice!

A primeira vez em que estive em NYC durante o inverno foi quando fui a serviço à fábrica dos motores do avião Super-Constellation. Naqueles tempos não havia “fingers” para embarcar ou desembarcar. A gente tinha que sair da cabine aquecida do avião e enfrentar o pátio gelado do aeroporto, com uma diferença de temperatura que podia chegar a uns 30 graus Celsius. Desembarquei, portanto, vestindo roupa relativamente leve, e tive um choque térmico ao enfrentar aqueles 8 ou 10 graus C negativos. Caminhei tiritando para o prédio da Imigração e lá fiquei algum tempo, roxo de frio.

O avião Super G tinha motores “Turbo-Compound” nos quais, numa tentativa de extrair o máximo de potência possível, a fábrica colocara três ventoinhas acionadas pelos gases do escapamento, que transmitiam ao eixo de manivelas um pouquinho e potência adicional. Tinha sido, digamos assim, o “canto do cisne” do motor a pistão, que estava fadado a ser substituído pelas turbinas a jato, que já surgiam um tanto timidamente no horizonte tecnológico aviatório.

O motor a pistão, com cilindros e eixo-manivelas, tivera seus momentos de glória na história aeronáutica. Graças a ele começou-se a voar com o mais pesado que o ar, e evoluiu-se gradativamente através de aviões de transporte de grande valor, tais como o DC-3, o C-46, o DC6B e outros, sem falar nos pequenos aviões de treinamento ou recreio, que usam até hoje excelentes motores de cilindros opostos. Ao surgir, porem, a necessidade e conveniência de fabricar aviões maiores e mais pesados, como o Super Constellation, foi necessário, na falta de coisa melhor, “envenenar” o motor a pistão com as tais ventoinhas, fazendo-o assim ultrapassar seus limites de operação segura e satisfatória. O belo e aperfeiçoado avião Super Constellation que a Lockheed projetou e produziu, com vários aperfeiçoamentos em relação a seus antecessores e contemporâneos, tinha seu “calcanhar de Aquiles”: era seu motor! A REAL e a VARIG operavam esses aviões, e se tornou bastante comum haver falha de motores durantes as viagens, especialmente na linha para NEW YORK, na qual o avião atravessava áreas sub-equatoriais e equatoriais, com grandes diferenças de temperatura. Os motores eram críticos, e falhavam com certa freqüência, no que se poderia chamar de estertor da fase cilindro e pistão das máquinas de combustão interna.

A Direção da VARIG, evidentemente, preocupou-se com esse estado de coisas, pois cada pane de motor no SUPER representava muitas vezes a necessidade de trocar o motor, com grandes demoras e atrasos para os passageiros, e os conseqüentes prejuízos. Foi, pois, devido a essa preocupação que o Presidente convocou uma reunião de técnicos em seu gabinete de POA, para discutir amplamente o assunto das falhas de motor no Super G e as eventuais medidas a serem tomadas. Não se chegou, porem, a uma conclusão definitiva, a não ser a necessidade de apresentar o problema e pedir solução aos engenheiros da fábrica dos motores nos USA, pois eles lidavam com centenas dessas máquinas e certamente poderiam fornecer alguma orientação. Decidiu-se, assim, enviar alguém aos USA para essas entrevistas com os técnicos americanos, e eu fui o escolhido para tal, apesar de achar, sinceramente, que não era o mais indicado para a missão. Não tive, porem, escolha, pois foi uma ordem de Ruben Berta.

Preparei-me para a ida aos USA, convocando para me assessorar o competente e experiente F/E Elton Teixeira (o chamado Teixeirinha), que tinha muitas horas de vôo em aviões Super G. Partimos então de POA, na esperança de conseguir com os americanos uma solução para as panes de nossos aviões.

Ao desembarcar em NYC, como já disse, senti muito frio, pois era o rigor do inverno e eu não levava roupas adequadas. Uma das primeiras coisas que fiz lá, portanto, foi procura uma das lojas “Army & Navy” que eu já conhecia, e que vendiam roupas e apetrechos das forças armadas dos USA, a preços muito convenientes. Comprei camisetas de lã, ceroulas compridas também de lã, meias grossas, botinas forradas de lã, um gorro forrado e um casacão próprio para o Pólo Sul. Levei tudo aquilo para o hotel, vesti-me como um explorador polar e saí para almoçarmos. Na rua, tudo bem, sentia-me protegido do frio, mas ao entrar no restaurante super-aquecido, comecei a sentir um enorme calor e a suar, a ponto de ir ao toalete para livrar-me de parte da vestimenta. Aprendi então que num lugar como NYC, com aquecimento em todos os lugares que a gente pudesse ir, o correto era vestir uma roupa relativamente leve coberta com um casacão adequado. No ambiente aquecido, era só tirar o casacão e ficar à vontade. Afinal eu estava acostumado com os invernos de POA, onde não haviam aquecimentos, e a gente tinha que usar dentro de casa a mesma roupa que usava na rua.

Na fábrica dos motores discutimos, eu e Teixeirinha, amplamente nosso problema de panes e os detalhes de nossa operação. Ao cabo de muitas considerações, eles chegaram à conclusão de que operávamos numa zona trans-equatorial e que as grandes variações de temperatura afetavam o funcionamento dos delicados motores. Recomendaram a utilização de nova tabela de potência, que elaboraram, e finalmente voltamos a POA com os resultados da consulta, e a nova tabela, que foi logo introduzida em nossa operação de vôo. Os resultados? Houve uma certa melhora, os motores deram menos pane, e a coisa ficou assim até a chegada do jato e a posterior venda dos Constellations. Coisas daqueles tempos e daquela tecnologia, que não tinha alternativa melhor.

domingo, 24 de junho de 2012

48) Um baiano credor da REAL

Quando eu e meus companheiros de Direção assumimos o controle e administração do Consórcio REAL, em 1961, no aeroporto de Congonhas, em SAO, começamos a tomar conhecimento da real situação econômica e financeira das empresas que a VARIG comprara. Essa situação era caótica, quase falimentar.

Pode-se dizer que a VARIG comprara a REAL num impulso de Ruben Berta, sem uma devida e minuciosa avaliação prévia. Que, se essa avaliação tivesse sido feita, a RG não teria comprado o Consórcio. Isso pode ser verdade, porem existe uma história que teria sido contada pelo próprio Berta, de que ele recebera uma mensagem do Presidente Jânio Quadros, muito amigo de Lineu Gomes ao que se dizia, de que “ou a VARIG comprava a REAL, ou ele, Jânio, criaria a AEROBRAS!“. Essa teria sido uma temida ameaça a Ruben Berta, que era o principal opositor à idéia da Aerobras, a qual passaria a ser uma estatal que encamparia todas as transportadoras brasileiras, incluindo naturalmente a VARIG, e que na opinião de Berta e outros representaria o fracasso do transporte aéreo no Brasil. Se isso foi verdade ou não, o fato é que a REAL estava praticamente falida e coube a nós, os enviados da VARIG, salvá-la da insolvência.

Arregaçamos as mangas e começamos a trabalhar. Reajustamos as linhas, com melhor aproveitamento, melhoramos a condição dos aviões com peças emprestadas pela VARIG, economizamos no que foi possível, e assim, paulatinamente, começamos a pagar as inúmeras dívidas e a melhorar o conceito das empresas, que estava abaixo das críticas.

Havia casos como o que exemplifico: A REAL tinha uma linha para Miami, que executava com aviões Super H. Um dia um desses aviões foi embargado pela justiça de Miami, ficando lá retido, para eventual pagamento de dívidas que a REAL tinha com empresas locais. Tivemos que, às pressas, arranjar o dinheiro para pagar tais dívidas e liberar o avião. Daí em diante, só mandávamos a MIA aviões Super G da VARIG.

Alguns anos antes de tudo isso, antes da venda da REAL, um rapaz baiano chamado Benedito, moreno, razoavelmente bem apessoado, na falta de coisa melhor para fazer em sua terra, emigrou para São Paulo à procura de emprego. Como tinha certas habilidades, empregou-se na REAL, como auxiliar de mecânico e começou a aprender o “metier” aviatório. Ao cabo de algum tempo, num período de férias, conseguiu uma passagem gratuita nos aviões da REAL que iam a Miami. Embarcou quase sem bagagem, com muito pouco dinheiro, sem saber o que o esperava e sem falar uma só palavra em inglês. Miami nessa época ainda não tinha recebido a invasão cubana, e nem ao menos espanhol se falava, apesar de que Benedito também não falava o espanhol, como bom baiano.

Ele era, porem, esperto e ativo e apesar de tudo conseguiu empreguinhos aqui e ali, principalmente em postos de gasolina e algumas oficinas de automóveis. Com isso punha algum dinheirinho nos bolsos e conseguia alojar-se em locais humildes e comer o suficiente. Mas Benedito era irrequieto e por isso começou a andar na direção oeste em geral, quase sempre pela grande estrada americana que atravessa o país do Atlântico ao Pacífico, apanhando caronas aqui e ali. Finalmente, após alguns meses de andanças, chegou a um lugarejo que era habitado e pertencia a uma tribo de índios peles-vermelhas. O cacique era praticamente o dono da terra, onde por sorte haviam descoberto petróleo, e fora feito um acordo com uma empresa petrolífera, pelo qual eles exploravam o petróleo e os índios, mormente o cacique, recebiam gordos dividendos. O rico cacique tinha uma filha, que em última análise era a herdeira de toda a grana.

Benedito (e agora já Benny), empregou-se num posto de gasolina e veio a conhecer a tal índia que afinal apaixonou-se pelo baiano. Casaram-se e Benny que era analfabeto mas não burro, foi para Los Angeles e com ao grana da índia fundou no aeroporto de LA uma empresa que fazia manutenção de aviões de terceiros e vendia peças. A coisa progrediu, a empresa cresceu e um dia chega a LA um Super H da REAL em pane. A firma de Benny atendeu o avião e com isso a REAL tornou-se freguesa da mesma, fazendo ali a manutenção de seus Super H que iam a Tóquio.

A conta da REAL na firma de Benny foi crescendo sem que a REAL pagasse qualquer coisa. Assim, quando Benny soube que ela fora vendida para VARIG criou esperanças de receber seu dinheiro, arrumou as malas e tocou-se para SAO, acompanhado por dois capangas e algumas caixas de uísque escocês, de que ele gostava muito. Chegou a SAO e em Congonhas procurou a Diretoria da REAL, ou seja, eu. Recebi Benny cordialmente, entrando ele em meu gabinete sorridente e amável. Analisamos a situação da dívida (que não era “bem” o que dizia ser) e firmamos um acordo pelo qual pagaríamos a divida com uma entrada e algumas parcelas, com o que ele ficou muito satisfeito, assinando o acordo com uma cruz. Nos despedimos cordialmente, sendo que Benny convidou-me para ir a LA hospedar-me em sua casa palaciana. Agradeci, mas nunca cheguei a ir. Ele partiu de SAO com seus capangas e o que sobrara do uísque, e nunca mais o vi. Nessas alturas a linha de Tóquio já estava sendo realizada com os 707 da RG, e a empresa havia montado em LA seu próprio serviço de manutenção, de modo que não foram mais usados os préstimos de Benny. Figura muito interessante, o Benny.

sábado, 23 de junho de 2012

47) Uma aventura nos Andes

DC-3

Nossa Força Aérea, a FAB, houve época em que mantinha linhas de transporte de correio, alguma carga e uns poucos passageiros por todo o país, e, inclusive, para alguns pontos do exterior. Usavam aviões Douglas C-47 cargueiros, nos quais os passageiros tinham que sentar-se em bancos de lona sem muito conforto; mas enfim, não custava nada e por isso ninguém reclamava. Certa vez num vôo com destino a La Paz, Bolívia, segundo contou-me um oficial que participara do acontecimento, um desses aviões levava uns poucos passageiros alem da tripulação, voando a mais de 3500 metros de altitude para poder sobrevoar o elevado e extenso planalto que existe na rota que vai de Cochabamba a La Paz. Para o C47, voar nessa altitude é quase impossível, principalmente se parar um de seus dois motores. O avião transportava algumas garrafas de oxigênio para o uso dos passageiros naquelas altitudes, além de alguma comida, agasalhos e água.

Estavam a meio caminho quando subitamente um dos motores parou de funcionar. Nessa situação, naquela altitude, não havia outra coisa a fazer se não pousar onde fosse possível. Felizmente o planalto era liso, sem obstáculos, e o piloto conseguiu pousar sem maiores dificuldades, com todos bem e o avião intacto. Mas, então, o que fazer? Estavam a centenas de quilômetros de qualquer lugar habitado, numa altitude em que quase não se podia respirar, e sob uma temperatura de pelo menos uns 20 graus C negativos, sem falar no vento cortante. Sem alternativa, pois a chegada de socorro era duvidosa, o grupo decidiu caminhar para oeste, em busca do fim do terrível planalto, onde poderia haver algum recurso de salvamento e comunicação.

Saíram, pois, caminhando com dificuldade pela árdua região, uns ajudando os outros, pois havia pessoas fisicamente menos aptas, carregando consigo o oxigênio, a comida, a água e alguns agasalhos, O avião ficou fechado e abandonado no local, pois não havia outra coisa a fazer, salvo uma vaga esperança de que pudessem chegar a algum lugar civilizado e pedir ajuda da FAB que, talvez, pudesse enviar mecânicos e um motor sobressalente para a aeronave, o que parecia não ser muito provável.

Assim, com muita coragem e determinação, caminharam muitos quilômetros até chegarem, afinal, a um local onde havia uma mina de cobre, com pessoas que os puderam socorrer. Havia recursos médicos rudimentares, alimentação e aquecimento, além de um caminhão que, a despeito do desconforto, pode transportar todos, por uma íngreme e estreita estradinha, pelas encostas do planalto, até uma pequena povoação onde conseguiram comunicar-se com La Paz. Viajaram depois por estrada até a Capital, de onde alguns retornaram ao Brasil. O que houve com o avião? Pois pasmem! Uma equipe de mecânicos da FAB conseguiu realizar a extraordinária tarefa de ir ao local onde estava o avião, num caminhão levando um novo motor para o C-47, que foi instalado com todos os efes e erres, a despeito da altitude, do frio e do vento, permitindo assim que um intrépido e hábil piloto decolasse do planalto e retornasse ao Brasil com o avião intacto! Que aventura magnífica, não?

sexta-feira, 22 de junho de 2012

46) Um pai extremado

DKW 1936

Vou contar aqui três histórias que nada têm a ver com aviação, mas que são interessantes. Trata-se da conduta de meu pai face a certas situações de seus dois filhos, eu e meu irmão mais moço. Meu pai era amável, cordato, bem intencionado, tinha uma grande facilidade em fazer amizades e por isso era muito benquisto em vários círculos da cidade onde morávamos, Porto Alegre, RS. Em 1937 ou 1938 nós morávamos no bairro da Glória, na rua Cel. Aparício Borges, bem no topo de uma colina onde se estendia essa rua, havendo, portanto, uma ladeira de nossa casa para qualquer dos lados da rua, uma até a linha do bonde Glória e outra na do bonde Partenon.

Sempre que alguém de nós saía de casa para ir à cidade, por exemplo, tinha que caminhar pouco mais de um quilômetro ladeira abaixo até os trilhos do bonde, e voltar ladeira acima até nossa residência. Meu pai tinha um pequeno automóvel DKW, importado da Alemanha que ele usava para ir a algum lugar. Eu e meu irmão tínhamos que caminhar aquele quilômetros, pois não havia outro jeito. A partir de uma certa época, porem, como nós regressávamos para casa à noite, nosso pai adotou a seguinte prática: Saia de casa no DKW, descia a ladeira até a linha do bonde Glória e por ali estacionava o DKW, aberto e com a chave na ignição, para que “os meninos” não tivessem que subir a ladeira a pé. Ele, porem, o fazia, deixando o carro para nosso uso! Note-se que nessa época não se roubavam carros em POA. O DKW ficava ali, aberto e com a chave na fechadura, horas a fio, à nossa disposição.

Outro caso a narrar: Meu irmão mais moço entrou para o Exército para obter seu certificado de reservista. Para isso tinha que submeter-se às práticas normais do treinamento militar, o que incluía Ordem Unida, marchas, tiro ao alvo e acampamentos, o que preocupava meu pai em função das “agruras” pelas quais estaria passando seu filho querido. Certa vez a tropa de meu irmão deslocou-se para um local algo distante da cidade, acampando à margem do rio Guaíba, num local aprazível onde havia um bosque. A tropa acampou, instalando as pequenas barracas onde os soldados dormiriam sobre qualquer tipo de revestimento no solo. Havia portanto um certo grau de desconforto, mas que fazia parte do exercício e era perfeitamente suportável pela rapaziada. Pois meu pai, muito preocupado, comprou um colchão confortável, amarrou-o na tolda do DKW e lá se foi, andando uns 30 km numa estrada ruim, até o acampamento dos soldados, onde, para constrangimento e desespero de meu irmão, entregou o colchão ao filho-soldado, provocando risos e troças dos colegas.

Mais uma de meu “velho”: Já morávamos na Av. Independência, na casa de meu avô materno. Eu tinha um pequeno grupo de amigos que tocavam alguns instrumentos tais como acordeon (eu), violões, etc. Reuniam-nos, principalmente aos fins de semana, quando tocávamos em aniversários de gurias que conhecíamos, ou fazíamos serenatas pelas ruas desertas de Porto Alegre, na alta madrugada, para as garotas pelas quais tínhamos algum interesse. A coisa se estendia até 4 ou 5 horas da manhã, quando então íamos comer pães recém feitos, e tomar café, na antiga e tradicional Confeitaria Rocco, que infelizmente não existe mais. Muitas vezes íamos a pé, percorrendo muitos quilômetros, com o entusiasmo e a energia da juventude. Mas às vezes, por uma ou outra razão, decidíamos ir de carro, usando para isso o vetusto DKW de meu pai. Era, porem, uma ação clandestina, desconhecida de meus pais que à 1 ou às 2 horas da madrugada estariam dormindo, de nada sabendo. Voltaríamos antes deles acordarem, e tudo ficaria entre nós. Uma noite que estávamos de saída, abrimos as portas da garage, e começamos a empurrar o DKW para fora, com a intenção de fazê-lo descer a ladeira da rua sem ligar o motor para não fazermos ruídos. Em dado momento, porem, dessa “traquinada”, enquanto eu e amigos empurrávamos o DKW, vi com espanto e incredulidade que um dos “empurradores“ do carro era meu próprio pai, de pijama e chinelos. Ele se associava às escapadas dos “meninos”, ajudando a tirar o carro sem fazer barulho, para não acordar minha mãe que era mais “durona”! Incrível, não?


45) A revoada dos uruguaios


Como já disse, há tempos faziam-se festas aeronáuticas, principalmente em outubro durante a Semana da Asa. Havia demonstração de vôos acrobáticos, concursos, revoadas. Hoje parece que não se usa mais fazer dessas coisas! Será que a aviação se tornou tão comum e corriqueira que não vale mais a pena festejá-la? Não saberia dizer.

Pois um dia desses tempos, a VARIG, que voava para Montevidéo há já algum tempo, talvez por razões publicitárias, promoveu uma revoada de aviões uruguaios de turismo ou esporte, de vários pontos daquele país a Porto Alegre. Os aviadores seriam recebidos pela VARIG (o próprio Ruben Berta estava envolvido) no aeroporto São João, levados para hotéis, depois fariam uma excursão a Caxias voltando no mesmo dia à tarde, iriam novamente para hotéis e talvez no dia seguinte decolariam de volta a seu país. Tudo pago e monitorado pela VARIG, através de meu setor, que era o mais relacionado com essas coisas esportivas.

Fiz um contato com a administração do aeroporto e consegui que destinassem uma grande área entre a pista de pouso e as instalações da RG, terreno gramado, para o estacionamento dos 40 ou 50 aviões pequenos dos uruguaios. Preparei estacas e cordas para amarrarmos as avionetas, pois a época era de vendavais. Depois fiz algo que aprendera quando fora a Natal, RN (Base Aérea de Parnamirim, na mão dos norte-americanos), buscar peças para nossos C-47: Eles tinham um jeep com uma grande tabuleta na traseira, na qual estava escrito com letras grandes: “FOLLOW ME”. Quando a gente pousava na pista da Base, esse jeep vinha ao nosso encontro e se postava à frente do avião, de forma a que o piloto sabia que devia segui-lo até o estacionamento. Assim, pois, coloquei numa nossa viatura uma tabuleta que dizia, em letras garrafais: “SIGA-ME”.

O uruguaios começaram a chegar e a pousar no aeroporto. Eu ou outro qualquer seguíamos até o avião recém pousado e o conduzíamos ao local escolhido para o estacionamento, sempre usando a tal tabuleta SIGA-ME, o que deu excelentes resultados. Quando os aviões eram estacionados minha turma de mecânicos e auxiliares cravava estacas no solo e amarrava os aviões o mais firmemente possível. Assim foi feito com todos, e seus pilotos e eventuais passageiros foram reunidos, colocados num ônibus e levados a Caxias para uma visita e almoço. Ruben Berta seguiu no mesmo ônibus, à testa da comitiva.

Tudo pronto, deixei alguns elementos como guardas dos aviões e fui para casa almoçar. Em cerca de uma hora, notei que o tempo estava mudando, com aspectos tormentosos e, preocupado com os aviões dos uruguaios, segui de volta ao aeroporto, acompanhado de minha esposa. Quando lá chegamos, vi que o quadrante oeste do céu estava prenunciando mau tempo. Convoquei minha turma e revisei todas as amarras dos aviões. Depois coloquei meu carro à frente dos aviões mais avançados, e aguardei os acontecimentos, temendo pelo que pudesse acontecer. Pois não deu outra: aproximou-se um tremendo temporal, com chuva e ventos fortíssimos, a ponto de eu quase não poder respirar, na rua, tanto era o volume de água que caía dos céus. Com o forte vento, os aviões mais à frente começaram a levantar vôo, arrancando as estacas que havíamos cravado no solo, ou arrebentando as cordas que os amarravam, e depois caindo sobre os que estavam mais atrás, num pandemônio de destruição. Isso tudo durou talvez uma meia hora, ao cabo da qual, afastado o temporal, pudemos verificar que todos os avião haviam sido danificados, uns mais outros menos!

Fiquei desolado e extremamente preocupado com o que teríamos que fazer. A caravana de uruguaios com Ruben Berta deveria já estar a caminho de POA, por isso entrei em meu carro e segui pela estrada BR‑116 ao encontro do ônibus que deveria voltar de Caxias. Encontrei-o além de Novo Hamburgo, fiz sinal para que parasse e aproximei-me da porta aberta. Todos olharam-me com preocupação, pois certamente eu estava trazendo más notícias. Ruben Berta sentava-se na primeira poltrona do ônibus e foi a ele que eu me dirigi, contando o que acontecera.

A consternação foi generalizada, como se pode deduzir. Houve lágrimas e lamentações. Berta, porem, foi à altura da tragédia: Tratou de tranqüilizar os uruguaios, assegurando a eles que a VARIG reconstruiria todos os aviões , que eles retornariam a Montevidéo nos aviões da VARIG de graça, e que, à medida em que os aviões ficassem prontos eles seriam avisados via RG de Montevidéo para que viesse buscá-los, sempre sem despesas.

Isso serviu de consolo, e aos poucos os “hermanos” foram se acalmando, para serem levados a hotéis, sempre às expensas da RG. Fizemos uma lista de todos, com seus endereços e telefones, e pusemos mãos à obra. Em cerca de um ano as oficinas da antiga VAE e agora pertencentes à Dir. do Ensino, reconstruíram todos os aviões. O uruguaios, muito satisfeitos, chegavam a POA e recebiam seus “novos” aviões, levando-os de volta ao lar. Essa generosidade da VARIG rendeu bons dividendos, pois tudo o que aconteceu foi amplamente divulgado pela imprensa uruguaia, ficando o conceito da empresa gaúcha, no país vizinho, nas alturas.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

44) Von Clausbruch

Atlântico

Quando a VARIG começou, em 1927, a segunda empresa de transporte aéreo da América do Sul (a primeira fora a SCADTA da Colômbia, mais tarde AVIANCA), não tinha tripulantes para seu hidro- avião Dornier Wal, que fazia a linha pioneira POA-RIO GRANDE e volta, creio que todos os dias menos fins de semana. Enquanto preparava seus futuros pilotos, voava na RG o conceituado aviador alemão, de origem nobre, Von Clausbruch. Ele não era funcionário da VARIG, e sim da CONDOR LUFTHANSA, a empresa mercantil que fornecera o hidro-avião ATLÂNTICO para a RG. Voava na VARIG por empréstimo, “in the mean time”.

Na ocasião a fábrica alemã Dornier havia fabricado o maior avião do mundo, o hidroavião DO X (ou seja, Dornier DEZ) Era um monstrengo com 12 motores colocados , dois a dois e opostos, sobre as asas. O taxi e a decolagem do lago à margem do qual se situava a fábrica não foram muito difíceis, pois as águas eram tranqüilas e havia pouco vento. Manobrar um hidroavião sobre a água, principalmente daquele tamanho, não é tarefa para qualquer piloto, a não ser que seja perito em hidros. Após a decolagem, o enorme avião dirigiu-se à costa da África (creio que Dakar), onde reabasteceria para um vôo à América do Norte, onde os alemães tinham esperanças de vender o monstrengo. Na costa da África, porem, havia correntes marítimas e ventos adversos às intenções dos alemães, de tal sorte que o piloto que capitaneara o DO X até ali não conseguiu, após várias tentativas, dirigir o avião e decolar com o mesmo.

Dornier X

Então, em desespero de causa, o que fizeram os dirigentes da Dornier? Pois mandaram buscar o experiente Von Clausbruch, que em dois toques conseguiu o que eles queriam, e levou o avião com sucesso a NYC e trazendo-o depois de volta à sua casa, pois a venda não foi feita.

Von Clausbruch voou algum tempo mais na VARIG, e depois mudou-se para o RIO onde casou e fixou residência. Eu o conheci pessoalmente, pelo fim da década dos anos 1940, quando ele veio a POA como representante de uma fábrica de óleos lubrificantes, para oferecer tais óleos à VARIG. Era ainda simpático e bem apessoado, cordial e falava um fluente português. Grande figura!

43) O dinheiro dos nordestinos


Houve época em que nordestinos (principalmente homens) emigravam de suas cidades no nordeste brasileiro, onde havia desemprego, em busca de trabalho e remuneração, para centros como São Paulo e Rio de Janeiro. Essas pessoas costumavam com certa regularidade enviar algum dinheiro para seus familiares dentro de envelopes nos quais colocavam suas cartas, despachando-os pelo Correio Nacional. A VARIG, como outras empresas, transportava sacos do Correio que continham essas missivas.

A partir de uma certa data, esses sacos começaram a chegar a seu destino violados, nos compartimentos dos aviões, junto com envelopes rasgados, dos quais o dinheiro havia sido furtado. Verificou-se que isso acontecia somente nos aviões CV-240 que faziam a linha SAO-RIO-Capitais do nordeste. Os Convair tinham um pequeno compartimento de cargas na cauda do avião, separado da toalete por uma parede onde havia um painel removível com alguns parafusos, pelo qual poderia passar uma pessoa de certa agilidade. Como esse compartimento só tinha uma porta de acesso pelo exterior do avião, e como os sacos de correio eram embarcados intactos e chegavam violados, era evidente que a violação tinha ocorrido durante o vôo, e pelo tal painel da toalete. O culpado, portanto, tinha que ser um tripulante. O caso preocupou muito o Correio e a direção da VARIG; era necessário fazer uma investigação que apurasse o culpado e acabasse com o furto.

Na época eu era Diretor do Ensino, e a despeito de meus deveres estarem relacionados somente com o treinamento, em geral sempre que aparecia um problema um pouco fora da rotina aeronáutica, o assunto era encaminhado a mim (em POA), sem que eu saiba bem, até hoje, qual a razão disso. Assim sendo, o problema da violação dos sacos caiu em minhas mãos, e eu parti para uma investigação.

Descobri logo que a coisa só ocorria quando fazia parte da tripulação um determinado indivíduo. Só podia ser essa a pessoa, que, durante o vôo, removia o tal painel da parede da toalete e passava para dentro do compartimento de carga, cortava os sacos, rasgava os envelopes, sacava o dinheiro que houvesse, voltava ao toalete e colocava o tal painel no respectivo lugar. Isso tudo teria que feito rápida e eficientemente, para que parecesse que ele apenas tivesse estado na toalete. Tratava-se agora de lavrar um flagrante para “pegar” o malandro.

Procurei a Chefia da Polícia em POA para aconselhar-me com eles. Disseram-me que havia uma tinta especial, que demorava a secar, era praticamente invisível à luz normal, manchava as mãos de quem a tocasse, custando a sair com uma simples lavagem, mas tornando-se visível (manchas) quando as mãos em questão eram expostas à luz ultra-violeta. Era o que nós precisávamos, porem a Polícia não tinha a tal tinta que só se poderia obter através de algum órgão policial nos USA. Fiz contato com nossa gente em NYC, e a tal tinta foi obtida pela gentileza da Polícia de NYC, e remetida para mim em POA.

Feito isso, seguimos para o RIO, eu e alguns policiais de POA. Nos dividimos entre RIO e Salvador, e então, num dia em que fazia parte da tripulação o suspeito, pintamos os sacos e os colocamos a bordo do Convair que saia para Salvador. Na Capital baiana, a Polícia deteve os tripulantes, verificou que os sacos haviam sido violados, e submeteu a tripulação ao teste da luz ultra-violeta. Pois pasmem! O ladrão era o próprio Comandante do avião, que procedia como havíamos imaginado, numa ação tresloucada e irresponsável, numa irresistível compulsão clepto-maníaca, arriscando sua reputação e carreira profissional (ele era um bom piloto, bem conceituado!), em troca de uns míseros dinheirinhos dos pobres trabalhadores nordestinos. A coisa acabou aí, e nunca mais houve esse tipo de furto, que eu saiba. A VARIG não prestou queixa, e ele não foi preso. Simplesmente demitido, o que todos lamentamos. Triste, não?

42) A viagem de um advogado

DC-3

Havia em Porto Alegre um advogado famoso que viajava com certa freqüência entre POA e RIO, a negócios, utilizando os aviões DC-3 da VARIG. Isso porque ele era grande amigo de Ruben Berta e da empresa, tendo mesmo participado de algumas iniciativas importantes da RG, inclusive na concepção e organização da Fundação dos Funcionários, junto com Berta. Por isso, tinha passe livre nos aviões da RG, onde era muito conhecido de todos.

Certa vez ele estava no RIO, preparando-se para retornar a POA. Dirigiu-se ao aeroporto Santos Dumont, onde procurou o balcão da VARIG, fez seu “check in”, despachou sua única mala e sentou-se para esperar o embarque, distraindo-se com alguma leitura jurídica. Isso porque ele era mesmo muito distraído, pouca atenção prestando ao mundo que o cercava. Súbito os alto-falantes do aeroporto anunciaram o embarque para POA. Ele juntou-se a uma fila de pessoas e embarcou no avião.
Quando chegou a POA, dirigiu-se ao balcão da VARIG, para reclamar sua bagagem Apresentou o “ticket” para o funcionário que ali estava, o qual olhou-o e exclamou:

- “Mas essa mala foi despachada no Rio e está no avião da VARIG, que ainda não chegou ! Como é possível ?”

- “Não chegou ? Claro que chegou, pois eu vim nele, que acaba de pousar!”

- “Doutor, o avião que chegou é da FAB e não da VARIG, o qual deverá pousar dentro de alguns minutos!”

E era verdade ! O distraído advogado embarcara num DC-3 de FAB, avião cargueiro sem tapetes, sem revestimentos nas paredes, sem poltronas (ele tinha dois bancos de lona, ao comprido da fuselagem, que eram usados, na guerra, por paraquedistas). O homem nada percebera, apesar de viajar seguidamente nos DC-3 da RG, e nem mesmo a “aeromoça”, que era um sargento da FAB devidamente uniformizado, ele identificou!

41) A velhinha no aeroporto Afonso Pena


Um de nossos Curtiss C-46 com passageiros, iniciou a decolagem na pista do aeroporto Afonso Pena, em Curitiba, PR. Essa pista tinha uma pequena lagoa junto a uma das cabeceiras, com pouca profundidade. O C-46 estava pela metade da pista, quando um dos seus motores entrou em pane total. O piloto decidiu ficar na pista e para isso cortou o outro motor e aplicou os freios das rodas com violência.

O avião continuou avançando e não parou até o fim da pista, precipitando-se com grande impacto e agitação de água, no interior da pequena lagoa. Ninguém se machucou, e a tripulação tratou de abrir as saídas da cabine, ajudando os diversos passageiros a saírem para dentro da lagoa, caminhando em direção da cabeceira da pista, onde já chegava socorro.

O Comandante (que sempre é o último a sair, segundo a tradição), resolveu dar uma olhada pela cabine, para ver se todos haviam saído. Com surpresa viu que havia, sentada numa das poltronas dianteiras da aeronave, uma senhora que aparentava bastante idade, numa posição relaxada e tranqüila. Aproximou-se da velhinha e falou:

- “Vovó, vamos sair ! Levante-se que eu a ajudarei!”

A velhinha olhou para o Comandante, sorrindo e confiante, dizendo:

- “Sim, moço ! Mas nós já chegamos? Que ligeiro!”

Pois ela não tinha experiência, nunca voara. Haviam-lhe contado algumas coisas, mas tudo era confuso. Estava encantada com esse novo e maravilhoso meio de transporte, tão diferente dos que ela conhecera! Tudo o que estava acontecendo, seguramente fazia parte da rotina operacional da coisa, inclusive aquele pouso tão agitado e com tanta água, no “aeroporto de Congonhas”, que era seu destino! Ora, afinal eram tempos modernos, com certas coisas que ela não entendia muito bem!

terça-feira, 19 de junho de 2012

40) A compra dos aviões Convair – 240

Varig – Salgado Filho, anos 60

Depois de comprar e usar amplamente e com sucesso os aviões “sobra-de-guerra C-46 e C-47, a VARIG dispos-se a entrar na nova era dos aviões fabricados depois da guerra, o que significava um bom passo à frente, com a introdução de trens de pouso triciclos, hélices de passo reversível, cabines pressurizadas e climatizadas, e vôo em maiores altitudes e com maior velocidade, por cima de camadas de mau tempo, evitando eventuais turbulências.

Nessa época (início da década dos anos 1950) a RG não tinha escritório nos USA, mantendo apenas um representante para fins de compra e envio de peças de aviões, um ex-piloto já meio maduro, chamado Donald Cardiff (creio que ele era escocês, e não americano, mas não tenho certeza). Logo após a guerra ele havia comprado um avião e iniciado operações de transporte na costa oeste dos USA, creio que ele mesmo pilotando o avião, mas as coisas não haviam dado certo, ele fechara a empresa e se estabelecera como representante de companhias aéreas na cidade de Montreal, Canadá. A VARIG o conhecera e ele passara a ser seu representante na América do Norte, especialmente nos USA.

Alem de peças, ele havia comprado mais de um avião C-46 para a RG, sendo que um deles ele havia trazido para POA, pilotando sozinho o avião, sem co-piloto ou qualquer outro auxiliar! Na chegada em POA ele havia estacionado o avião no pátio da RG,desligado os motores, descido do avião apesar da ausência de escada, (considerando mais de dois metros de altura que tinha a porta do C-46 em relação ao solo) e simplesmente e à vista de todos, urinado nas rodas do avião, dizendo que isso fazia para esfriar os freios! Era um tipo fora de convenções, o Cardiff! Andando de carro dirigido por ele, a gente ficava arrepiado, pois ele não só não respeitava as leis do trânsito, como sempre arrancava com a segunda marcha. Nunca vi o Cardiff usar a primeira para arrancar!

Esse elemento, que veio a tornar-se um valioso e leal colaborador da VARIG em NYC, descobriu que a Pan American estava vendendo dois de seus Convair 240, em Miami. A PAA tinha uma grande base em MIA, onde ficavam seus CV-240 utilizados nas rotas centro americanas da empresa, os quais estavam agora para serem substituídos por Douglas DC-6B, maiores e mais eficientes. O CV-240 fora lançado em 1948, logo após o fim da 2ª, guerra, sendo um dos primeiros aviões a incorporarem condições de maior segurança no vôo, na indústria aeronáutica pós-guerra, após a recomendação pelo ICAO e pelo FAA, de que aviões de passageiros com dois motores deviam poder voar com plena carga com um só motor funcionando (e o outro em pane), na decolagem. Isso fazia parte das CAR Part 4b (Civil Air Regulations Part 4b) que se espalharam pelo mundo dos fabricante de aviões, passando a ser condição obrigatória.
O Convair-240, que a PAA comprara em 1948, tinha motores fracos para cumprir com essas exigências, mormente nos aeroportos cercados de montanhas que existiam na América Central, onde a PAA operaria com esses aviões. Assim a PAA, com suas possibilidades de tecnologia avançada em MIA, trocou os motores dos CV-240 por outros de maior potência e fez modificações no trem de pouso para que suportasse motores mais pesados.

A VARIG, informada por Cardiff, interessou-se pelos aviões que estavam à venda, e comprou dois dos CV-240 modificados que a PAA tinha no aeroporto de MIA, revisados e em excelente estado de conservação. Essa era uma época de grandes modificações nos padrões aeronáuticos especialmente para a VARIG, que vinha de uma origem muito modesta e provinciana. Seria também que pela primeira vez que nossos pilotos e mecânicos teriam que fazer cursos completos no exterior em função da compra de novos aviões. Como eu, Diretor do Ensino, coube-me a tarefa de ir a Miami tratar com a Pan American do treinamento do pessoal RG e também, aproveitando a ocasião, providenciar a venda para o Brasil dos dois aviões e de algum estoque de peças.

Viajei para Miami pela PAA e lá tratei logo de apresentar-me à chefia da PAA, e traçar um programa de ação visando o treinamento. Eu me havia hospedado num motel defronte à sede da PAA, que estava vazio e me cobrava apenas 2 dólares por dia, pois era verão e por isso fora de temporada em MIA. A VARIG pagava-me 15 dólares por dia para minhas despesas, mas como era fora de temporada tudo era barato e o que eu recebia dava para pagar hotel, comida, e ainda sobrava para alugar um modesto carro Henry J, um modelo relativamente pequeno que a fábrica do famoso jeep militar havia lançado.

(A propósito: Vocês sabem de onde vem a palavra ou nome “jeep” ? Pois vem do seguinte: Durante a 2ª. Guerra os americanos acharam que as tropas espalhadas por quase todo o mundo, de vários países, precisavam de um veículo ágil, leve, robusto, capaz de suportar qualquer terreno, de manutenção fácil e que não fosse muito caro. Projetaram então, os engenheiros, o que se tornou conhecido em todo o mundo aliado com o apelido de veículo GP - de General Purpose, ou uso generalizado. Como o “g”em inglês se pronuncia “gi”, e o “p”, “pi”, o nome passou a ser “gipi”, ou “jeep”. Interessante, não ?).

Voltando a Miami: O Cardiff era uma espécie de tesoureiro da VARIG nos USA e Canadá, nos tempos em que a empresa não tinha escritórios em NYC. Quando a gente precisava de dinheiro, tinha que solicitar a ele, que o enviava pela Western Union, uma organização modelar, muito eficiente. O dinheiro chegava logo em seguida e a gente o apanhava numa das inúmeras agências da organização. Em NYC, num hotel grande em que estávamos uma ocasião, havia um representante da WU em cada andar do hotel.

Tracei com o pessoal da PAA um plano de treinamento para um grupo de pilotos e outro de mecânicos e instrutores da RG, que chegaria de POA num C-46 cargueiro, em breve. Como estava funcionando um curso de “ground school” para pilotos da PAA, integrei-me ao mesmo para conhecer melhor nossos novos aviões. Isso durou cerca de duas semanas e nesse ínterim viria de POA o C-46 com o pessoal.

Quando chegou nosso C-46 fui receber o pessoal da RG no pátio onde mandaram que estacionasse o Curtiss. Conduzi todos para o mesmo hotel onde eu estava e cuidei para que tivessem tudo que necessitassem. Em tempo: enquanto esperava a chegada de nosso pessoal, estudando o Convair, aproximou-se de Miami um terrível furacão que ameaçava destruir tudo. Havia notícias do avanço do furacão em todas as lojas e restaurantes de MIA, e eu acompanhava aquilo, temendo pela segurança de nossos dois CV-240 isolados num canto do enorme aeroporto. Com a aproximação do furacão, todos os aviões deixaram Miami, seguindo para lugares mais ao norte, fora da rota da tempestade. Procurei com o pessoal da PAA alguns pilotos que pudessem ser contratados para levar nossos aviões daquele lugar, mas ninguém consegui. Fiquei, portanto, no hotel “torcendo” para que o tal furacão não danificasse nossos apreciados Convair. Mas afinal o bicho papão desviou-se para o norte, e não passou por Miami. Ainda bem!

Os variguianos fizeram os devidos cursos com pleno sucesso, inclusive treinamento de vôo, podendo assim, algumas semanas mais tarde, levar os aviões para seu novo lar, a VARIG de POA.

Minha tarefa cumprida, antes disso, e fiquei pronto para retornar a POA aproveitando a “carona” de nosso C-46, que voltava cheio de peças. Os motores dos CV-240 tinham um dispositivo que injetava metanol (álcool metílico, extremamente tóxico!) nos cilindros para resfriá-los, no momento em que o piloto estava solicitando plena potência, na decolagem. Com essa medida (automática) o motor desenvolvia cerca de 100 HP a mais, melhorando assim a performance do motor naquele momento crítico. Eu sabia disso, sabia que antes de cada decolagem , nos pátios dos aeroportos, era necessário abastecer um pequeno tanque que o avião possuía, com metanol. Isso significava duas coisas pelo menos: a disponibilidade de metanol nos aeroportos do Brasil, e as expressas recomendações de cuidados com o álcool metílico tão tóxico, que o pessoal que lidasse com o mesmo deveria tomar. Preocupado com isso, escrevi tais recomendações para o pessoal do reabastecimento e, na dúvida se teríamos o tal metanol logo no início das operações com os novos aviões, no Brasil, comprei na PAA um tambor de 200 litros do veneno, e ajudei a que o colocassem dentro do C-46, bem sobre seu centro de gravidade, fortemente amarrado com grossas cordas, pois sabia das condições de turbulência que poderíamos encontrar pelo caminho para POA, especialmente ao longo da América Central, pois teríamos que voar em altitudes não muito elevadas, com nuvens turbulentas.

Mas afinal tudo correu a contento, os dois aviões chegaram a POA e foram logo colocados em serviço, e bem aproveitados por alguns anos. Entrementes nossas rivais, a REAL e a CRUZEIRO, haviam encomendado na fábrica aviões Convair mais modernos do que os nossos, pois seriam fabricados vários anos depois dos nossos e, portanto, incorporando aperfeiçoamentos importantes que haviam sido desenvolvidos ao longo dos anos, à medida que a indústria aeronáutica progredia, depois do fim da guerra. O sistema de pressurização e climatização de nossos aviões, assim, projetado e fabricado em 1948 ou 1949, quando essa coisa estava recém engatinhando, pois durante a guerra não se fabricaram aviões pressurizados, era deficiente e bastante inferior ao que estava instalado nos novos 340 e 440 de nossas concorrentes. Mas “ al fin y al cabo” a coisa funcionou a contento, pois faltavam poucos anos para tudo tomar outros rumos, desconhecidos e imprevisíveis.

Apenas para encerrar o assunto Convair: Quando os dois aviões chegaram a POA, a nova pista de concreto do aeroporto de POA não estava pronta. Por isso os aviões pousaram na pista da Base Aérea de Canoas, onde operaram, por algum tempo, até que a nova pista estivesse terminada. Quando isso aconteceu, Ruben Berta convidou várias autoridades aeronáuticas para virem do Rio a POA, num CV-240 da VARIG, para a inauguração da pista. A Torre de Controle de POA recebeu instruções para não deixar qualquer outro avião pousar na nova pista, até que o Convair da RG com autoridades a bordo o fizesse. O Presidente da REAL, na época nossa mais ferrenha rival, despachou às pressas um Convair 340, de SAO para POA, com a intenção de que o avião da REAL chegasse primeiro a POA, assim inaugurando a pista, frustrando a “festa” da RG. O Convair da REAL chegou mesmo primeiro, mas a Torre não permitiu o pouso, contrariando as intenções do piloto, e obrigando-o a pousar na Base Aérea.

Pouco depois disso, chega sobre POA o avião da VARIG, com Berta e autoridades. O piloto fez umas voltas sobre o aeroporto, para que contemplassem a nova pista, e preparou-se para pousar, inaugurando-a como estava previsto. O CV-240, porem, tinha um sistema pneumático que freava suas rodas com ar comprimido, caso o sistema normal hidráulico falhasse. Fazia parte da lista de cheques antes do pouso, testar esse equipamento acionando um controle que canalizava ar comprimido para os freios das rodas, imobilizando-as. Depois esse controle devia ser colocado na posição que deixava o ar escapar dos freios, liberando as rodas para o pouso. Pois o piloto esqueceu de fazer isso, pousando na nova pista com as rodas do avião travadas! Houve uma desaceleração brusca do avião, que provocou preocupação entre os passageiros, que se depararam com seu avião imobilizado no meio da pista, com os pneus de ambas as rodas estourados! Foi preciso providenciar um ônibus para transportar os desencantados passageiros, inclusive e principalmente Ruben Berta, que via assim seus esforços para coroar com a presença de altas autoridades aquilo que fora uma de suas grandes ambições e preocupações, ou seja, equipar o aeroporto de POA com uma pista grande e pavimentada.

Outra coisa importante que ocorreu com a vinda dos CV-240 para a VARIG foi a seguinte: A empresa desejava operar os aviões no aeroporto Santos Dumont, no RIO, por razões de preferência do público e promocionais. Porem o DAC não aprovava essa operação na exígua pista do Santos Dumont com os novos aviões, a não ser que a empresa provasse que a performance do avião era satisfatória, de acordo com as novas recomendações do ICAO, naquelas condições e decolando com peso máximo. Nós não tínhamos como provar isso, pois o manual com curvas de performance do CV-240 referia-se ao avião original, com os motores mais fracos, antes da modificação feita pela PAA. Era preciso, então, elaborar novas curvas de performance baseadas em experiências reais feitas com o avião. Tocou-me executar essa difícil tarefa, por razões que eu não saberia explicar.

Eu tinha no Ensino dois colaboradores competentes e dispostos a tudo. Eram o Cmte. Schittini, solo no avião, e o Prof. Rodeck, engenheiro e navegador, com larga experiência. Convoquei-os para a tarefa, o que prontamente aceitaram. Enquanto Schittini aprontava um avião com sacos de areia para ficar com peso máximo, abastecido e com co-piloto, eu e Rodeck íamos até a pista, para demarcá-la com a dimensão da do Santos Dumont, ou seja, cerca de 1000 metros de comprimento. Nesse ponto fiquei eu, com uma bandeira na mão. Rodeck foi para o fim da pista, com um teodolito. Schittini então foi para a cabeceira da pista encurtada, acelerou os motores ao máximo e partiu com o Convair até atingir a V1(velocidade de decisão, na qual o piloto decide se vai ou fica, no caso de pane de motor). Nessa velocidade Schittini cortou o motor crítico e “embandeirou” sua hélice, continuando a corrida até atingir a V2 (velocidade de decolagem) na qual o avião saiu da pista e subiu, monomotor. Ao passar no ponto onde eu me encontrava (simulando a pista do Santos Dumont) levantei a bandeira que tinha, com o que Rodeck mediu a altura em que o avião estava, ao fim da pista simulada do Santos Dumont. Fizemos essa prova duas ou três vezes, depois uma de aceleração e parada dentro da “pista” (na qual estouraram os 4 pneus do avião!).

Os resultados dessas provas foram excelentes, tendo o avião provado que superava as exigências do DAC. Assim, elaboramos novas curvas de performance, e eu fui ao RIO para mostrar às autoridades que o avião podia operar no Santos Dumont. Isso foi feito, e o avião aprovado. Creio que foi essa a única vez que se fez tais provas práticas com aviões no Brasil. Mais um pioneirismo a ser creditado à VARIG!