segunda-feira, 23 de julho de 2012

61) Acidentes com aviões e sua investigação

Quando ocorre um acidente aviatório, com ou sem vítimas a lamentar, existe sempre a preocupação de investigar o que ocorreu, quais as causas do acidente e, em função disso, adotar ou recomendar providências que visem evitar outro acidente nas mesmas condições ou condições semelhantes. A investigação de um acidente, no entanto, pode ser às vezes muito difícil, requerendo sua solução a presença de investigadores competentes e experientes, que disponham de ilimitados recursos técnicos e laboratoriais. É tal a importância de uma investigação de acidentes com avião, que governos tais como o dos USA há muito tempo criaram organismos altamente especializados nessa tarefa. Nos USA existe há muito tempo a então CAB (Civil Aeronautics Board), que era especializada na investigação de acidentes com aviões e hoje foi estendida à investigação de acidentes com quaisquer meios de transporte.(NTSB, National Transportation Safety Board).
Na VARIG, durante alguns anos os eventuais acidentes com aviões ou não eram investigados, ou eram analisados muito sumaria e improvisadamente. Em geral saía todo mundo correndo para apanhar o primeiro transporte que fosse ao local do acidente, sem que pessoas pré-escolhidas e preparadas, equipadas com material adequado ao caso, fossem as que acorriam ao local e davam início à investigação. A autoridade aeronáutica do pais, também, geralmente destacava um oficial qualquer que se dirigia ao local e não tinha, às vezes a devida qualificação para a investigação, louvando-se eventualmente nas conclusões a que porventura o pessoal da empresa tivesse chegado. Nas demais empresas do Brasil, a situação era aproximadamente a mesma.
Houve alguns acidentes com aviões da VARIG e de outras empresas, mas em geral as eventuais conclusões não eram eficientemente utilizadas como advertências e precauções contra outros acidentes que pudessem acontecer de forma semelhante. Isso porque não havia uma organização adequada a essas medidas. Cite-se como exemplo um acidente na decolagem do Galeão com um DC-8 da PANAIR. O avião teve pane de motor após a V1 e o piloto que estava nos controles decidiu interromper a decolagem quando não havia mais pista para tal. O avião caiu no mar e houve vítimas fatais por falta absoluta de uma embarcação que pudesse resgatar os passageiros acumulados sobre as asa da aeronave, que flutuou por uns 20 minutos. Eu casualmente estava no aeroporto e vi tudo acontecer. Soube-se do acontecido porque os pilotos nadaram para a terra e sobreviveram. Algumas horas após o acidente, eu já estava em meu hotel, pronto para dormir, quando bateram na porta do quarto lá pelas 2 da madrugada. Eram Ruben Berta e o Brigadeiro Diretor do DAC que queriam minha opinião sobre o acontecido. Tive oportunidade de dizer que uma coisa a ser feita era manter embarcações de prontidão nas cabeceiras das pistas que terminavam no mar, para evitar que pessoas morressem afogadas. Que eu saiba, até hoje isso não foi feito.
Não quero dizer que inventei a investigação científica de acidentes aeronáuticos em nosso pais, mas de algum modo, pelo menos um pouquinho, eu contribui para a melhoria das investigações. Isso se explica: No ano de 1951, eu e o amigo e colega do Erni Peixoto. Como já disse antes, fomos aos USA, numa bolsa de estudos patrocinada pela CAB americana, órgão que cuidava das relações internacionais da aviação civil americana e da investigação de acidentes com aviões dos USA, para a qual viajamos por todo o território norte-americano, visitando organizações relacionadas com o tráfego aéreo civil, e estagiando alguns dias aqui ou ali. Nessa ocasião tivemos oportunidade de visitar a sede da CAB em Oklahoma City, onde fiquei vivamente interessado no aspecto de investigação de acidentes, para o que essa Junta dispunha de todos os recursos imagináveis e de investigadores profissionais experientes e categorizados. Aprendi muita coisa com eles nessa área, e inclusive pude ver como tratavam das conclusões e recomendações após um acidente. Entre outras coisas eles publicavam um relatório extenso, minucioso e muito instrutivo, que era distribuído entre todas as empresas de tráfego aéreo, inclusive do exterior. Tratei nessa ocasião de inscrever-me em sua “mailing list” para receber também tais relatórios, o que aconteceu durante vários anos. Eu recebia os relatórios na Dir. do Ensino em POA, traduzia-os (às vezes fazendo um resumo), imprimia-os na gráfica do Ensino e os distribuía entre todos os que pudessem ter interesse em seus ensinamentos, inclusive empresas rivais tais como Real, Cruzeiro, etc.
O que aprendia com esses relatórios, acrescido do que observara em minha visita à CAB nos USA, serviu como base a uma tentativa de organizar na VARIG em POA um arremedo de Comissão Investigadora de Acidentes, o que funcionou satisfatoriamente durante o tempo em que estive em POA, antes da compra da REAL. A primeira coisa que fiz, foi organizar “kits” de equipamentos que poderiam ser úteis em caso de acidente. Isso porque, antes disso, os improvisados investigadores saiam ventando de POA com a primeira condução até o local do acidente, sem levar qualquer equipamento que poderia ser útil ou até necessário à investigação. Assim, com o auxílio de colegas (inclusive o competente e saudoso Dr. Oscar Petersen), montei bolsas de lonas com coisas tais como ferramentas, alguns medicamentos de urgência, lanternas, salva vidas, facões, botas, soro anti-ofídico e tetânico, embalagens para armazenar amostras, papel e canetas para anotações, e outras coisas mais. As bolsas eram separadas de acordo com o local do acidente: ou mar, ou selva, ou montanhas, regiões frias ou quentes, roupagens especiais, etc.
Em seguida organizei uma pequena comissão investigadora, com pessoal escolhido e sob minha orientação. Tivemos oportunidade de investigar um ou outro acidente, de maiores ou menores proporções, com bons resultados. Após cada investigação, eu elaborava um relatório completo e minucioso, o qual, assinado por mim, era impresso e distribuído em caráter sigiloso, aos elementos que pudessem estar interessados no assunto. Era inevitável apontar um ou outro culpado de falhas ou erros que tivessem levado ao acidente, e infelizmente isso fazia com que alguns elementos pouco confiáveis entregassem cópias dos relatórios sigilosos a parentes dos eventuais acusados, que então vinham a mim reclamar do que chamavam de “acusação injusta contra um ente querido”, o qual às vezes tinha falecido no acidente, apesar de eventual responsabilidade. Essa foi uma de minhas ocupações enquanto estive na Diretoria do Ensino, em POA. Alguns anos mais tarde fui transferido para o RIO e depois SAO, e não mais me envolvi com a investigação de acidentes. Felizmente hoje em dia existe um organismo oficial responsável pela investigação de acidentes de aviação, a CENIPA, ficando as empresas até certo ponto, liberadas dessa responsabilidade.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

60) Velocity of Rotation

B-747

A “Velocity of Rotation”, ou simplesmente VR é a velocidade, na decolagem de um avião a jato, na qual o piloto “cabra” o avião para fazê-lo girar (daí o nome de “rotation”) em torno dos eixos da rodas do trem principal, para que assuma a atitude que lhe vai permitir decolar, ou sair do solo, logo adiante quando atinge a velocidade de decolagem, ou V2. A ação de cabrar na VR tem que ser muito bem calculada, pois nessa mudança de atitude a cauda do avião passa muito perto da pista. A VR é calculada em função do peso do avião e da localização de seu centro de gravidade, e os pilotos observam o surgir dessa velocidade para poder decolar com segurança.

Essa definição de velocidade na decolagem teve origem logo após o término da 2ª. Guerra, quando o ICAO e o FAA americano estabeleceram normas que deveriam ser adotadas nos aviões multimotores que surgiam na época. Essas normas previam as velocidades VMC, V1, V2 (Minimum Control, Decision, Take-off). Quando o piloto decidia prosseguir com um motor em pane, ele cabrava para decolar na V2. Quando surgiram os jatos multimotores, verificou-se que o piloto tinha que cabrar o avião antes da V2, pois o jato demandava uma considerável mudança de atitude para decolar, e se a cabragem fosse na V2 não haveria pista que chegasse.

Pois houve um caso em que um Boeing 747 da VARIG, pleno de passageiros, decolando do Galeão com destino a New York, teve a VR de decolagem calculada erroneamente, o que fez com que, quando o piloto cabrou o avião, a cauda deste batesse violentamente contra o solo da pista, arrancando uma chapa de quase cinco metros de comprimento do revestimento da cauda. O Comandante do avião não teve alternativa senão prosseguir no vôo, pois não havia mais espaço para interromper a decolagem. Ficou portanto sobrevoando o aeroporto, enquanto um jato da FAB decolava e voava por debaixo do 747 para avaliar o acontecimento; seu piloto só pôde ver que havia um grande buraco na cauda do 747, e nada mais. Depois de algum tempo sobrevoando o aeroporto e discutindo o assunto com o pessoal de terra, o Comandante do 747 decidiu prosseguir a New York, apesar do incidente. Voou então cerca de dez horas, com a cabine completamente pressurizada, num vôo normal, sem que os passageiros pressentissem qualquer anormalidade.

Quando o avião chegou a New York, já lá estavam técnicos da Boeing, para avaliar e eventualmente consertar os danos. Segundo eles, teria sido uma imprudência voar naquelas condições, pois ninguém poderia saber se a estrutura fora afetada de modo a chegar à temida despressurização explosiva. Mas, enfim, nada de mais grave aconteceu, fora os prejuízos materiais. Não há dúvidas de que a Boeing sabe construir bons aviões!

domingo, 15 de julho de 2012

59) As “caixas pretas”

“Caixa Preta”

Quem já leu algo ou ouviu falar sobre acidentes com aviões, certamente já se deparou com a expressão “caixa preta” referindo-se aos gravadores de voz e de dados de vôo que existem nos jatos modernos de transporte de passageiros, cuja finalidade é gravar dados e vozes que podem ajudar na investigação das causas do acidente. Acontece que esses equipamentos não são nem uma caixa, nem da cor preta. Sua cor, por exemplo, em geral é laranja, para facilitar sua localização entre os destroços eventuais da aeronave acidentada. Então porque são esses equipamentos chamados de “caixas pretas”?

Pois a explicação é simples, e eu sou testemunha do errôneo surgimento dessa denominação, que merece, a bem da verdade, ser corrigida. Acontece que a coisa surgiu na escola para pilotos da Pan American, em Miami, USA, quando eu fazia lá um curso. O instrutor, que descrevia ao sistemas de um avião fazendo esquemas com giz num “quadro negro” (pois na época todo quadro era da cor preta), sempre que surgia um sistema elétrico ou hidráulico muito complicado para o entendimento dos pilotos, que não eram mecânicos, e cujo conhecimento para os pilotos bastava que soubessem que o sistema existia, que estivesse localizado neste ou naquele lugar do avião, e que exercesse tal e qual função. Não era necessário perder tempo e complicar as coisas descrevendo o funcionamento interno do mesmo, que nada interessava à função de piloto. Então o professor traçava um quadrado ou retângulo no lugar em que estaria a unidade, e dizia: ”This is a Black Box!”. Era “Black” poque o quadro onde ele riscava a giz era preto, e era “Box” porque quadrado ou retângulo em inglês também se pode chamar de “Box”, e nem sempre, necessariamente, “caixa”!

Essa expressão, aplicada aos gravadores de voz e dados de vôo que eram apresentados aos pilotos, eram também chamados de “Black Boxes” porque não interessava aos pilotos seu funcionamento interno, e não porque pudessem ser “caixas” e muito menos “pretas”. E aí entraram os “tradutore, traditore”, como dizem os italianos, traduzindo a coisa errada e irresponsavelmente. Por favor, não vamos mais chamar esses gravadores de “caixas pretas”, per Baco!

sexta-feira, 13 de julho de 2012

58) Cães especiais

Durante toda minha vida possui cães de várias espécies, porem predominantemente pastores alemães. Pretendo comentar situações que vivi com alguns deles, que considero especiais por uma ou outra razão. Assim, começo com um cão que ganhei de um tio-avô, quando tinha aproximadamente 10 anos de idade. O velho tio Zéca morava na rua Venâncio Aires em Porto Alegre e tinha em casa vários cães e muitos passarinhos em gaiolas penduradas no teto da casa. Ele era um tipo esquisitão, muito econômico, cujas roupas eram feitas pela esposa, folgadas, num estilo “à moda da casa”, com o característico de terem bolsos bem fundos(!) ”para caberem coisas”, diziam. Certa vez ele embarcou num bonde para ir ao centro da cidade e, no aperto, um larápio enfiou a mão no bolso de sua calça, mas como o bolso era muito fundo, o ladrão terminou enfiando todo o braço. e sendo apanhado “com a boca na botija”. Pois uma das cadelas de Tio Zeca deu cria, e ele num gesto inusitado de generosidade, colocou um dos filhotes (um macho) numa caixa de sapatos e foi à nossa casa nos Moínhos de Vento, levando o cachorrinho como presente para mim. Era um cusco mestiço de várias raças, com predominância, acho eu, de Fox e/ou Pointer, pois seu corpo lembrava um perdigueiro de pernas curtas e fortes. As orelhas eram grandes e caídas, e não tinha rabo. Criou-se muito bem, sem jamais receber qualquer medicação ou vacina, pois na época isso não era usado. Também nunca foi a um veterinário, pois talvez essa profissão nem existisse. Andava solto por toda a parte, e afeiçoou-se muito a mim e eu a ele. Quando eu saia de bicicleta pelas ruas do bairro, ele galopava atrás de mim. Era um grande caçador de ratos e chamava-se Nilo não saberia dizer por que razão.

Um dia tivemos que nos mudar para a casa de meu avô, na Av. Independência, e aí surgiu um problema: meu avô não gostava de cães e não queria o Nilo em sua casa. Fiquei desolado ante a perspectiva de separar-me do Nilo. Minha mãe, porem, achou uma solução que só me agradou em parte: Havia nas proximidades um armazém de um português chamado Rosa, onde a família comprava gêneros, pois na época não havia super-mercados. “Seu” Rosa concordou em ficar com o cachorro em seu armazém até que surgisse outra solução para o problema. Foi então o coitado do Nilo para esse local, onde ficou acorrentado num pátio que era depósito de carvão, sujo, magro e triste, pois nunca estivera preso a uma corrente. A vantagem é que eu podia visitá-lo com freqüência, mas o sofrimento para ambos era grande, e doía-me o coração quando voltava para casa e deixava o Nilo desolado e sem esperanças de liberdade.

Um dia meu avô resolveu mudar-se para sua estância no Uruguái, e nunca mais voltou. Ficou por lá algum tempo, depois teve um problema de saúde e faleceu em Montevidéo. Quando o velho João saiu de casa para não mais voltar, não havendo mais objeções à presença de cães na casa, fui buscar o Nilo no armazém Rosa, e trouxe-o para casa para tomar um bom banho e receber a alimentação que costumava comer. Claro, muito feliz com a liberdade e bom tratamento que voltou a ter. Convivemos amistosamente mais alguns anos, já não mais da mesma forma que antes pois eu estudava e trabalhava, até que eu tive que viajar ao Rio de Janeiro e lá passar praticamente um ano. Nesse ínterim meus pais haviam-se mudado para uma casa no bairro da Glória, e quando retornei, ao fim de 1941, já não encontrei mais o Nilo. Pelo que soube, ele estava dando sinais de velhice, ficando caduco e estendendo cada vez mais suas ausências, até que um dia não mais reapareceu. Suponho que esteja agora no Valhala dos cães, paquerando alguma cadelinha no cio ou atrás de um imaginário rato.
Quando comecei a trabalhar na VARIG, em fins de 1941, tivemos em casa um Boxer que apesar da feroz carantonha era extremamente dócil e amistoso. Gostava muito de mim e, quando nos fins de semana eu ficava consertando um velho Nash que comprara, e que sempre requeria consertos, o que muitas vezes significava deitar-me no chão, o Boxer (que se chamava Bugre) achava que isso era uma tentativa de convivência mais íntima e por isso simplesmente deitava-se sobre meu corpo com seus bons 30 ou 40 quilos. Era um cachorrão muito amistoso, o Bugre!
Depois disso, já casado e morador do bairro Petrópolis, tive oportunidade de possuir um cão extraordinário – o Grey – do qual já falei em outro capítulo, filho da Waco, do aeroporto de Pelotas, RS. Esse foi um dos melhores cães que já tive e que foi, infelizmente, roubado por um vizinho inescrupuloso.
Depois veio o” Jeep”, quando já morávamos na Glória, numa casa que construí ao lado da de meus pais. Jeep era um Pointer importado da Espanha por um amigo caçador, que deu-me o cachorro numa época em que eu pretendia também caçar perdizes. Tornou-se um cão de porte avantajado, extremamente a árdego e faminto. Como nosso terreno tinha apenas uma cerca de arame, o cão fugia de casa com freqüência, voltando para casa carregando um pão ou uma manta de toicinho, roubados da casa de algum vizinho. Mesmo depois que passei a acorrentá-lo, continuou com suas fugas, pois era tão forte que arrebentava a corrente. Cheguei finalmente à conclusão que talvez fosse melhor treiná-lo no farejamento e caça às perdizes, pois isso era, afinal, sua suposta vocação. Para tanto recorri a um amigo, grande caçador, o Delegado de Polícia Amândio, que também trabalhava no aeroporto São João. Amândio recomendou-me que trouxesse Jeep ao aeroporto (que na época.transbordava de perdizes eu suas macegas) num domingo de bom tempo, e uma corda comprida. Assim fiz e nós os dois fomos para o campo, com o Jeep amarrado à corda com uns 5 metros. Quando se viu face às macegas, Jeep ficou muito agitado. Amândio, que era o “expert” recomendou-me: ”Dá mais corda a ele, deixa-o farejar o campo”! Assim fiz, mas quando soltava um pouco de corda, Jeep deu uma feroz arrancada, a corda escapou de minha mão e ele saiu correndo enquanto nós víamos seu vulto esbranquiçado sumir à distância, com as orelhas sacudindo. Imaginei que ele corria em direção à AV. Assis Brasil, que existia naquela direção em que ia, bem distante. Assim, peguei meu carro e corri para a tal avenida. Após alguma distância, pude ver, longe à minha frente, um vulto esbranquiçado e orelhudo correndo pelo leito da avenida, com um bom pedaço de corda arrastado atrás dele. Claro, era o Jeep! Fui em sua perseguição e consegui alcançá-lo e capturá-lo, levando-o de volta à casa e desistindo de treiná-lo como cão de caça.

Francamente, não sabia o que fazer com o Jeep. Um dia, porem, um outro amigo, também caçador, manifestou desejo de receber o cão, pois afinal sua linhagem e ardor poderiam torná-lo um precioso cão de caça. Dei, portanto o Jeep a esse amigo. Passados alguns meses, encontrei-o no aeroporto e pedi notícias do Jeep, ao que ele respondeu: “Tive que dá-lo para outra pessoa! Minha mulher não o agüentava mais e um dia me disse: -“ Ou o jeep, ou eu”!

E assim lá se foi o Jeep, talvez para cumprir seu destino que, afinal, não parecia ser caçar e sim correr desvairadamente pelos campos sem fim!!

Um dia, quando já morávamos na rua Victor Hugo, em Petrópolis, POA, RS, um amigo nos presenteou com um filhote de Fox Terrier, ao qual demos o nome de PIRRO (não saberia dizer qual a razão!). Criou-se muito bem e tornou-se um cachorrinho alegre, esperto e amável. Tinha duas particularidades: adorava passear em qualquer veículo, especialmente automóveis, e gostava de me ouvir tocar acordeão ou violoncelo; sentava-se à minha frente, levantava a cabeça e uivava desesperadamente enquanto eu estivesse tocando. Creio que pretendia acompanhar-me musicalmente. Quanto a gostar de veículos, bastava que um carro parasse e abrisse a porta para que Pirro saltasse para dentro, fosse lá de quem fosse o veículo. Quando Cecília saia de casa para ir ao centro da cidade, embarcando no bonde que parava na esquina de nossa rua, Pirro ia junto e também embarcava no bonde, criando um problema para Cecília e o motorneiro do bonde, no sentido de fazerem Pirro desembarcar e voltar para casa. Pirro um dia desapareceu e nunca mais voltou. Acho que alguém passou defronte à nossa casa, num automóvel, abriu a porta e lá se foi ele sabe-se para onde!

No ano de 1961 mudei-me primeiro para o Rio depois para São Paulo, ficando a família em POA até que minha situação se definisse, o que ocorreu com a compra da REAL S/A. Aí mudamo-nos todos para SAO e nossos cães foram doados a amigos em POA. Eu havia alugado uma boa casa em SAO, com pátio grande, mas não tinha cães, até que um dia chegou pela VARIG uma gaiola com um grande cão pastor enfurecido dentro da mesma, a qual foi colocada em meu pátio. Viera de POA, endereçada a mim.

Acontece que um amigo e colega que morava em POA e tinha esse pastor, fora transferido para o Rio e, meses atrás, havia-me perguntado se eu receberia o cão em minha casa , em SAO, e eu dissera que sim, porem já não me lembrava mais do ocorrido, muito menos do nome do cão. Ninguém se atrevia a soltar o cão enraivecido. Tive então que lançar mão de expedientes tais como falar com ele, dar-lhe água e comida, enfim, cativá-lo, o que consegui após algum tempo, colocando uma coleira em seu pescoço e, então, abrindo a jaula. Pois o cão saiu dócil e tranqüilo; parecia que estava era apavorado com a prisão, o vôo e a ausência de seus donos. Esse cão, que depois descobrimos chamar-se “Connie” tornou-se um grande amigo, dócil e obediente, e um bom guarda de nossa casa. Ele tinha uma técnica especial de derrubar as pessoas de quem não gostava, abocanhando um pé e fazendo uma manobra que jogava a criatura no solo, indefesa. Fez isso com algumas pessoas que invadiram nossa casa, inclusive um cobrador de impostos achacador, que nunca mais voltou.

Zeus

Como tivemos outros pastores, Connie tornou-se o chefe da matilha, isso até a chegada de Zeus, que foi um pastor alemão de raça, pois tinha um vasto pedigree com antepassados premiados, e que eu comprara num canil. Era de médio porte, com uma bela estampa, inteligente e treinado, que se encantou por mim logo de saída. Levei-o para casa e soltei-o no pátio para que decidisse com Connie quem seria o líder. Pois Zeus, apesar de menor e mais moço (tinha cerca de um ano e meio de idade), deu uma tremenda surra em Connie que, com isso, se aniquilou. Zeus passou a ser o chefe indiscutível. Quando tive que mudar-me de volta a Porto Alegre, viajei de automóvel com a família e mandei dois cães (Zeus e outro que me doara o Kennel Clube de SAO) num avião cargueiro. Os outros que ficaram, doei a amigos. O avião partiu de SAO para POA com os dois cães em jaulas de sarrafos. Alguns minutos após a decolagem, recebi uma mensagem do Comandante do avião, dizendo que um dos cães arrebentara a jaula e estava solto na cabine de carga. Pedia instruções.
 Como Zeus era mais ativo e feroz do que o outro, imaginei que fora ele que se soltara. Recomendei que fechassem a porta do Cockpit, que eu tomaria providências para o desembarque dos cães em POA. E assim foi feito: enviei uma mensagem a POA no sentido de que se comunicassem com meu filho Sérgio e o avisassem da chegada dos cães para que ele, que os conhecia, pudesse retirá-los de bordo.

Quando o avião pousou em POA, Sérgio estava no aeroporto e entrou no avião e removeu os dois cães sem problemas. A surpresa foi que o que arrebentara a jaula não fora Zeus mas sim o outro que era mais nervoso. Zeus serviu-nos vários anos, sempre atento, obediente e agressivo para com estranhos que invadissem nossa casa, como foi o caso de uma mulher que abriu o portão e entrou em nosso terreno, apesar do grande aviso que eu pusera no portão, advertindo as pessoas de que tínhamos cão feroz. Pois a mulher entrou e foi agredida por Zeus, que mordeu sua bunda e ficou vigiando-a até que eu chegasse. Depois de levá-la a um pronto socorro, perguntei-lhe: “Você não viu o aviso de que havia cão feroz ?”, ao que ela respondeu: “Eu sou analfabeta ! Zeus morreu de velho e está enterrado em nosso jardim. Um dos melhores cães que já tive !”

Tivemos vários cães nesse ínterim, porem os que mais tiveram realce em nossa afetividade, foram os Dackel. Começamos com um Dackel puro, tamanho médio, todo preto, que chamamos de Pee-wee. Um amigo de Novo Hamburgo tinha criação e me presenteou com um filhote. Criou-se muito bem e tornou-se grande amigo nosso. Quando fazíamos churrasco em nossa casa da praia de Atlântida, que era cercada por um muro com meio metro de altura, os cinco mil ou mais cães vadios que havia na praia cercavam nosso muro, atraídos pelo cheiro do churrasco. Pois Pee-wee patrulhava o muro pelo lado de dentro, latindo furiosamente para a cachorrada, que – incrível – o respeitava. Certo dia nosso portão em POA ficou aberto e Pee-wee correu para a calçada oposta, perseguindo outro cão. Um carro que passava o atropelou e ele voltou para casa arrastando-se com as patas da frente e um olhar desesperado de quem pede socorro.  Levei-o ao veterinário, que pediu uma radiografia. Na época, não existiam clinicas radiográficas para animais em POA. Mas eu tinha um bom amigo que era médico radiologista e que administrava uma clínica no centro da cidade, para humanos. Falei com ele o qual, bondosamente, prontificou-se a radiografar o cãozinho, e lá fui eu com Pee-wee no colo, enfrentar os olhares escandalizados dos clientes que estavam na sala-de-espera.

Pee-wee tivera uma lesão na coluna e ficara, aparentemente, paralítico das patas traseiras. Começou então um período de tentativa de cura que pôs à prova a coragem e a determinação do cão, pois Pee-wee ficou deitado sobre uma cama forrada de jornais que eu arranjara num canto da casa, praticamente imóvel, durante cerca de dois meses. Eu o alimentava e limpava diariamente e ele suportava tudo com um estoicismo admirável. Um dia, com satisfação e surpresa geral para todos, Pee-wee levantou-se e caminhou com certa dificuldade, mostrando sem dúvida que estava curado daquela suposta paralisia Viveu vários anos mais, até que um dia deitou-se no chão da sala e não mais pôde levantar-se, apesar de tudo que fizemos. Ficou internado numa clínica, mas não houve mais solução e o cãozinho morreu antes de voltar para casa.
Kitty

A convivência com Pee-wee nos ensinou a gostar muito da raça Dackel. Assim, após sua morte, decidimos adquirir outro da mesma raça e por isso fomos a uma criadora na Vila Nova, onde encontramos dezenas de filhotes à venda. Creio que nossa neta Sandra estava junto, e com ela escolhemos dois filhotes, um casal, ele marron de pelo liso e ela escura de pelo de arame. Denominamos o macho Pee-wee 2 e a fêmea Kitty. Levamos os dois para casa,onde se criaram lindamente, mas com temperamentos totalmente diferentes: o macho era comodista, apesar de muito valente, ao passo que a fêmea era excelente caçadora. Caçava tudo, inclusive os gatos da vizinha, para meu constrangimento. Certa vez um gambá entrou em nosso pátio. Tínhamos dois pastores que correram atrás do gambá, mas quando este, encurralado num canto da casa virou-se de frente para os cães com os dentes arreganhados, estes recuaram e ficaram a certa distância. Kitty, muito menor do que o gambá, atirou-se ferozmente contra este, pegou-o pelo pescoço e o matou. Era uma caçadora emérita!

Pee-wee 2

Tivemos nessa época um filhotão de Rotweiler, um tanto feroz. Um dia houve uma briga entre ele e os pastores e o minúsculo Pee-wee 2 resolveu interferir, atacando o Rotweiler que, em revide, mordeu o Dackel no meio do corpo, deixando-o bem machucado. Passado mais algum tempo, verificamos que Pee-wee 2 tinha muito tártaro acumulado nos dentes, o que o impedia de mastigar. Levei-o ao veterinário para remover o tártaro, o que foi feito sob anestesia geral. Quando fui buscá-lo, estava recém saindo da anestesia e se arrastava pelo chão, ganindo desesperadamente. O veterinário pegou-o no colo para ver de que se tratava e o cãozinho nesse momento morreu. Nunca fiquei sabendo o que ocorrera com ele, e lamentei muito sua perda.

A cadelinha Kitty desenvolveu uma série de tumores nas mamas, o que foi necessário operar. Ela parecia estar se recuperando, porem um dia não podia mais levantar-se do chão, e como estava muito idosa e sofrendo bastante, mandei sacrificá-la.

Como nessas altura nós também estávamos muito idosos, não me pareceu mais possível criar e cuidar de cães, ficando essa tarefa para os mais jovens. E assim, a contragosto, acabou nossa “carreira” de cinófilos, “carreira” essa que durou, no meu caso, mais de oitenta anos. Restou apenas a saudade e a lembrança daqueles cães que mais se ligaram a nós, de uma maneira ou de outra, tais como os inesquecíveis NILO, GREY, ZEUS, PEE-WEE l, PEE-WEE 2 e KITTY.

sábado, 7 de julho de 2012

57) Automóveis “y otras cocitas más”


Certamente, eu pretendia só falar de aviação! Mas ocorrem-me outras coisas que marcaram época em minha memória e que sinto vontade de contar, mesmo que possam não ser de grande interesse.

Meu avô materno, João Rodrigues, era um gauchão dono de duas grandes estâncias na fronteira do Brasil com o Uruguai, uma no Município de Quaraí e outra no “Departamiento” de Artigas. Ele passou grande parte de sua vida residindo numa ou outra das estâncias, principalmente na do Uruguai, onde construiu uma residência muito confortável para a época e o lugar (no meio do campo, longe de qualquer lugar!), pois ostentava, inclusive, um banheiro completo com água encanada e tudo o mais. Isso porque ele era, apesar de homem do campo, instruído e muito progressista. Na estância do Uruguai ele tinha dois automóveis: um Chevrolet “Pavão” 1926 e um Ford “de bigodes” 1924. Quem guiava esses carros? Um “chaufeur”, é claro. A gasolina era comprada em latas de 20 litros, guardadas no galpão, e a partida dos carros era com manivelas. De vez em quando meu avô precisava fazer compras. Então ia num dos carros pelo meio do campo, pois não havia estrada, até a cidade de Artigas, onde embarcava no “ferrocarril” e ia a Montevidéo (onde tinha duas irmãs). Fazia então suas compras, tudo sempre da melhor qualidade, pois Montevidéo era pródiga em produtos importados da Europa. Tenho até hoje uma de suas bengalas, de ébano e com castão de prata lavrada, que certamente é de origem inglesa ou francesa.

Um dia, já meio idoso, meu avô resolveu mudar-se para Porto Alegre, pois as filhas precisavam estudar em bons colégios, e entregou a administração das estâncias ao único filho, formado em engenharia, mas também criado no campo. Comprou em POA uma bela casa, mas que não tinha banheiro. Mandou então transformar um dos quartos em banheiro, com todos os implementos, inclusive aquecedor d’água à gás (havia gás encanado na Av Independência), pia, banheira, espelhos e uma latrina com caixa de descarga (que se chamou por muito tempo em POA “patente”, pois o apetrecho era importado da Inglaterra e tinha escrito no lado de dentro a palavra “patent”). Logo em seguida o velho João comprou um carro Mercedes que foi um dos primeiros automóveis a transitar nas ruas de POA. Esse carro foi importado da Alemanha especialmente para ele, e tinha um motorista de origem alemã, com guarda-pó, chapéu, óculos e tudo o mais, que parecia ter vindo da Alemanha junto com o carro.

Esse carro tinha faróis a acetileno que tinham de ser acesos com fósforos antes da partida noturna (o que era muito raro). A buzina era uma corneta instalada no lado externo, à esquerda do motorista. Este viajava “na chuva”, pois não havia teto sobre sua cabeça. Havia porem um vidro grosso separando a cabine dos passageiros do motorista, e um tubo acústico pelo qual os passageiros se comunicavam com o mesmo. Na cabine traseira havia um banco para duas ou três pessoas e um pouco adiante duas cadeiras dobráveis. Havia também, na parede lateral, um vaso com flores e um conjunto de papel, envelope, caneta e tinteiro, para escreverem cartas! Eu, com seis ou sete anos de idade, maravilhava-me com essa maravilha da tecnologia, e quando saíamos fazia questão de sentar-me ao lado do motorista, para absorver avidamente com olhos e ouvidos tudo que aquele extraordinário profissional fazia. Esse Mercedes foi substituído por um Buick aberto, bem mais moderno e este, depois, foi trocado por um Hudson fechado, um belo carro que eu admirava muito. Algum tempo depois meu avô faleceu e a família vendeu o carro. Era, realmente, um homem que apreciava as coisas que não eram de seu tempo.


Meu pai, Frederico Bordini, não era muito ligado em automóveis, talvez porque fossem caros e porque as facilidades de crédito e financiamento naquela época não eram como hoje. Creio que praticamente só se negociavam veículos (poucos) com pagamento a vista.Os carros em geral eram de origem norte americana, grandes e caros, e contavam-se nos dedos os que os possuíam. Houve porem um momento em que o Governo Brasileiro negociou um tratado de comércio com a Alemanha, que estava em grande desenvolvimento industrial, pelo que começaram a chegar a nosso pais muitos veículos alemães, em geral de tamanho reduzido, populares, a preços inferiores aos já existentes de origem americana. Eram automóveis VW, DKW, ADLER, OPEL, e motocicletas DKW, ZUNDAPP, BMW. Meu pai então comprou um DKW modelo 1937 ou 1938 que tinha carroceria de madeira revestida de aço, talvez por influência dos filhos, pois como disse ele tinha uma certa aversão a automóveis, pelo menos até esse momento. Isso é um pouco estranho, pois ele tivera uma experiência automobilística anos antes, com um amigo que fora com ele ao porto de POA para buscar um automóvel Mercedes-Benz que o pai do tal amigo importara da Alemanha. Isso deve ter sido aí por 1905 ou 1906, quando em POA só trafegavam dois ou três desses veículos. Pois foram os dois rapazes ao Porto, sem ter a menor idéia de como manejar aquela máquina. Na chegada já constataram que faltava o combustível para o motor funcionar, e não havia gasolina por ali, nem em qualquer outro lugar a não ser nos depósitos da Esso, em latas de 20 litros. Resolveram, então, ir a uma farmácia e comprar alguns litros de álcool, pois o álcool era combustível, não era? E assim foi feito, e depois de muitas tentativas conseguiram fazer o motor funcionar e, aos corcovos, levar o carro para casa, a despeito do trânsito congestionado por carroças nas vias portoalegrenses. Mas afinal foi uma experiência automobilística, não foi? Deve ter sido, pelo menos, o primeiro automóvel a rodar com álcool no Brasil.

O DKW de meu pai foi um carrinho que prestou bons serviços à família. Foi com ele, inclusive, que eu fui ao Rio de Janeiro em 1940, transitando pela futura BR-116 que estava em obras. Atravessei boa parte do RGS e de Santa Catarina rodando por  estradas secundárias e enlameadas, com o valente DKW vencendo os difíceis caminhos com correntes colocadas prudentemente nas rodas dianteiras, pois sua tração era nas rodas da frente, o que era alta novidade por onde passasse. As pessoas riam-se e diziam:”Ele não sabe que tem de colocar as correntes nas rodas de trás!” Isso porque ninguem vira jamais um automóvel com tração dianteira. Certa vez o DKW serviu de ambulância: eu luxara o ombro esquerdo e precisava recorrer ao Pronto Socorro para colocar o braço no lugar. Como não tínhamos telefone em casa, não tinha como chamar uma ambulância, e assim meu pai decidiu levar-me no DKW até o hospital, que era bem longe. Era noite, e ele não costumava acender os faróis do carro. Ligava apenas as sinaleiras e por isso nada enxergava e passava por cima de tudo que houvesse pela frente. Eu segurava o braço contra o peito, pois cada solavanco produzia uma dor terrível. E assim fomos até o hospital, aos corcovos e sob dor cruciante, graças ao DKW.

Durante o ano de 1941 (eu passei todo esse ano no Rio) Porto Alegre foi vítima de uma terrível enchente que transformou por várias semanas as partes baixas da cidade num imenso e profundo lago. O Aeroporto São João (e as instalações da VARIG) estavam sob 2 a 3 metros de água. Todo o tráfego aéreo no aeroporto cessou, exceto o aviãozinho Junkers Júnior (“a xúnior”, como o chamavam os alemães, pois para eles avião era “die machine”, ou seja, algo feminino). Acontece que “a xúnior” tinha um par de flutuadores que podiam ser instalados em lugar das rodas, e isso foi feito, de forma que o pequeno hidro era o único avião a transportar correio entre POA e Rio Grande. Mas havia um problema: “a xúnior” não tinha lemes nos flutuadores e por isso era quase impossível controlá-lo dentro d’água, especialmente quando havia vento, e só havia um piloto capaz de fazê-lo, que era o Cmte. Greiss, com sua experiência e habilidade com hidro-aviões. Assim, Greiss era o “dono” da situação.

Voltando ao DKW: Pois meu pai havia levado o carrinho para uma oficina que havia na rua Voluntários da Pátria, num local próximo à margem do Guaíba, que ficara completamente alagado, de sorte que o pobre DKW ficou totalmente submerso durante o longo período da enchente. Quando as águas baixaram, o valente carrinho fez funcionar seu motor e dali saiu por seus próprios meios, voltando para casa. Porem aquele “banho” inesperado e indesejado teve seu efeito: tudo começou a apodrecer e a cair. Caiu uma porta e meu pai andava sem ela; depois caiu a outra e ele continuou a andar sem portas, e assim foi com os faróis, o estofamento e os paralamas. A chave de ignição era uma chave-de-fenda, a buzina um fio descapado que se fazia roçar no metal. O banco do motorista passou a ser um caixote de querosene. Enfim: o carro foi desaparecendo aos poucos. E como na época se cozinhava com lenha e eram necessários gravetos para acender o fogão, minha mãe pedia esse recurso a meu pai e ele simplesmente ia lá fora, sacudia o DKW (ele era forte) e juntava os gravetos da carroceria apodrecida do ex-automóvel que haviam caído no chão, e os levava para minha mão acender o fogo. O que foi feito desse DKW? Não sei! Ele simplesmente desapareceu. Meu pai chegou a possuir mais tarde um Austin e tempos depois um Ford Corcel. Já estava, porem, bastante idoso e parou de dirigir.


Ainda sobre automóveis: Tive um grande e saudoso amigo, que acompanhou-me por muitos anos em minha carreira aviatória, desde nossos primeiros passos na antiga VAE. Ele se chamava Lili Lucas Souza Pinto, e foi Comandante de praticamente todos os tipos de aviões que a VARIG teve. Muito amigo e muito competente. Pois certa época dos velhos tempos ele e eu trabalhávamos juntos na antiga Diretoria do Ensino da RG. Ambos morávamos no bairro Petrópolis de Porto Alegre. Ele possuía um velho Opel Olympia de antes da Guerra, e eu não tinha carro. Assim, ele passava defronte à minha casa e me dava uma carona até o trabalho. Só que minha rua era uma descida e o carro não tinha freios. Então Lili chegava na esquina e começava a buzinar para chamar minha atenção, pois não podia parar o carro. Eu tinha que correr e embarcar com o carro andando, saltando para dentro do mesmo. Às vezes a velocidade era maior que ele conseguia engrenado em segunda marcha, e nesse caso ele se aproximava da calçada e fazia com que as rodas da direita raspassem no cordão da calçada, com o que a velocidade era reduzida. E assim íamos até o aeroporto, Lili usando de todos os truques que sabia para reduzir a velocidade ou parar o carro. Acho que o velho Opel não tinha mais condições de conserto, e por isso estava sempre sem freios e outras coisas mais.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

56) Mais gafanhotos!


Já que falamos em gafanhotos, lembro-me de algo que fizemos, nós da antiga VAE com relação a essa praga. Foi numa época em que o RGS era periodicamente invadido por nuvens de gafanhotos vindas da Argentina. Isso era muito prejudicial, pois os bichos devoravam as lavouras. Houve, então, uma iniciativa, se não me engano, da Secretaria Estadual da Agricultura, que significou o combate a essa praga com aviões que jogariam pó inseticida sobre os gafanhotos quando pousados geralmente em bosques, para dormir.

E então entramos nós. Recebemos aviões CAP-4 que tinham no assento traseiro um depósito de cerca de 100 quilos do pó. O avião voava baixo sobre o bosque e o piloto acionava um dispositivo que abria um alçapão sob a aeronave, espargindo o veneno sobre os gafanhotos pousados. Depois o avião retornava ao posto de abastecimento, mais pó era carregado e novo vôo inseticida era feito.

Isso deu muito bom resultado, e as nuvens de gafanhotos foram sendo dizimadas. Nunca ouvi ou li qualquer comentário sobre a excelente colaboração aérea que nós demos ao combate dessa praga. Será que esqueceram? Talvez, pois agora parece que não há mais gafanhotos, e “eles” não estão mais precisando de apoio aéreo. Aliás, nem poderão tê-lo de nossa parte, pois a VAE, a EVAER e a própria VARIG não existem mais! Que lástima!

55) Getúlio Vargas

Electra 10E

Em ocasiões diversas, tivemos oportunidades de transportar em nossos aviões figuras proeminentes de nosso país. E foi assim que um dia eu estava escalado para levar Getúlio Vargas e seu inseparável “Nêgo” Gregório e mais algumas pessoas, à estância Santos Reis, em São Borja, RS. Era um dia de primavera, quando o RGS estava coberto por uma densa névoa seca proveniente da queima de campos, o que ocorria tradicionalmente no Estado, após o inverno, para a renovação dos pastos. O vôo era num de nossos antigos Electrinhas, na época o melhor avião da RG. Na estância, que distava uns cem quilômetros da cidade de São Borja, ligada a esta por uma linha telefônica, havia uma pequena pista de pouso, que era o lombo de uma coxilha demarcado com “casinhas” caiadas.

A navegação nesses cerca de 600 Km de distância ia ser um problema, pois eu não contava com qualquer apoio de rádio e estava voando por instrumentos, pois a visibilidade era quase nula. Eu enxergava um pouquinho bem na vertical, pelo que pude orientar-me pela ferrovia que liga Porto Alegre a Santa Maria, mais ou menos na metade do caminho. Alem de Santa Maria, porem, a coisa complicou-se. Eu sabia que não deveria ultrapassar o rio Uruguai, na margem do qual está São Borja, pois alem do rio é território argentino, mas não tinha muita certeza se enxergaria o tal rio (que é bastante largo). De vez em quando, o “Nego” Gregório vinha até a cabine, cutucava-me com um dedo grosso e duro, e gritava: “O Doutor Getúlio quer saber quando vamos chegar!” Eu sabia tanto quanto ele, mas respondia: “Breve!”.

Lá pelas tantas, cheguei à conclusão de que estava praticamente perdido. Eu não tinha gasolina para ficar procurando São Borja, talvez já em território argentino, sem saber onde estava e para onde ir. Assim, num ataque de bom senso, resolvi apelar, para a goniometria, mas para isso precisava de uma estação transmissora. Eu não estava muito longe de Uruguaiana, onde a VARIG (Peixoto) tinha instalado recentemente um rádio-farol (NDB). Decidi então pousar em Uruguaiana, reabastecer e então subir o rio Uruguai até São Borja, voando baixo para não perder o rio de vista. Assim, mandei meu rádio-operador comunicar-se com Uruguaiana e dizer a eles que pusessem o NDB no ar, pois eu ia para lá. Em seguida chamei Gregório e comuniquei a ele o que pretendia fazer e quais as razões. Ele transmitiu a mensagem a Getúlio que mandou dizer-me que estava bem, mas que não informasse a Uruguaiana que ele estava a bordo, pois não queria ter que fazer um discurso. Fiz essa recomendação ao R/O, mas infelizmente ele já tinha dado a notícia a seu colega de Uruguaiana, pois os R/O adoram conversar entre si.

Seguimos pois com o farol na proa até o aeródromo de Uruguaiana, onde a bruma havia melhorado um pouco, pelo que pudemos enxergar as pistas e a área de estacionamento, que estava coalhada de gente e automóveis, contrariando o desejo de Vargas. Circulei o aeródromo e entrei na reta final para o pouso; quando estava a uns 50 metros de altura, divisei no horizonte uma nuvem escura que eu não sabia o que era. Logo, porem, fiquei sabendo: era uma enorme nuvem de gafanhotos que avançava em nossa direção, vindo da direção da Argentina. Em seguida essa nuvem atingiu o avião e seu parabrisas ficou totalmente coberto de gafanhotos esmagados, impedindo a visão dos pilotos para a pista, que se aproximava. Abri então a janela lateral da cabine e enfiei a cabeça para fora a fim de poder enxergar, o que consegui com dificuldade pois meus olhos e rosto em geral eram continuamente atingidos por gafanhotos. Afinal consegui a duras penas pousar o avião e taxiar para a construção que ali havia, onde ficamos, passageiros e tripulantes, ao abrigo dos gafanhotos.

Pude então explicar aos passageiros, especialmente a Getúlio Vargas, o que estava acontecendo e o que eu decidira fazer. Disse-lhes que teríamos que limpar o avião (parabrisas e radiadores de óleo dos motores), abastecê-lo e então prosseguir a São Borja subindo o rio. Evidentemente, eles não tiveram alternativa senão conformar-se com a situação; Mas vale mencionar que o Dr. Getúlio Vargas, muito esportivamente, encarou tudo com naturalidade e compreensão, aceitando minhas explicações com um sorriso.

Limpo e abastecido o avião após os gafanhotos terem ido embora, tendo Getúlio feito o esperado discurso e cumprimentado efusivamente por seus admiradores, partimos para São Borja, onde localizei a linha telefônica que nos levou à estância, onde pousei. Feitas as devidas despedidas, partimos, os três tripulantes, de volta a Porto Alegre. O grupo de passageiros, incluindo Vargas, ficou na beira da pista para ver nossa decolagem. À guisa de despedida e saudação, resolvi fazer uma decolagem diferente, passando rasante sobre o grupo e subido numa curva “americana”. Durante o processo, porem, senti o avião muito mole”, quase estolando, o que me obrigou a uma reação um tanto precipitada para não incorrer num tremendo “fiasco” ou, pior, num acidente que poderia incluir o atropelamento dos espectadores, o que teria, fatalmente, mudado a História do Brasil! Saí campo afora, voando baixo e com o avião ganhando velocidade aos poucos, enquanto verificávamos que o trem de pouso do Electrinha não tinha recolhido após a decolagem! Por isso o avião estava lerdo e quase estolando, pois seus motores tinham pouca potência! Eu fizera uma bobagem, sem contar com o imprevisto. Aliviado um pouco o sentimento de culpa, subi e aproei Porto Alegre, sintonizando no ADF a abençoada Rádio Farroupilha, que eu usara muitas vezes de longas distâncias, por sua potência. E assim encerrou-se um de meus contatos com o famoso Presidente Getúlio Vargas e seu “acompanhante” Gregório.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

54) O início da carreira, e o primeiro contato com a VARIG

Zeppelin

Provavelmente não interessa a quem ler este “blog”, como comecei minha carreira na VARIG, porem de qualquer modo vou tentar recordar o que aconteceu naqueles tempos, pois isso me faz bem.

Estávamos no ano de 1938 ou 39. Ainda não existia Ministério de Aeronáutica no Brasil, e sim Aviação do Exército e Aviação Naval, com modesta atividade de Aviação Civil. A VARIG, que existia desde 1927, tinha organizado uma escola de vôo (a VAE) no Aeroporto de São João. Pouco antes de começar a 2ª Guerra na Europa, uma delegação alemã de fabricação de aviões (a Buecker), veio ao Brasil com a finalidade de tentar vender seus aviões, que eram próprios para atividades de treinamento ou esportiva. Veio junto um famoso aviador alemão, perito em acrobacias aéreas. Essa delegação estendeu sua visita a Porto Alegre, sendo recebida pela Direção da VARIG, que organizou uma festa aviatória em homenagem aos alemães, para a qual a população local foi convidada, especialmente algumas autoridades estaduais e municipais, entre as quais meu pai, que era na época Diretor do Trânsito (ou DETRAN, como se chama hoje).

Por pura curiosidade, acompanhei meu pai. Minha “cultura“ aeronáutica era praticamente nula, resumindo-se à contemplação maravilhada de um velho avião Caudron da 1ª guerra, que pertencia a um suposto aviador, nosso vizinho, que viria a ser piloto da PANAIR. Ele cedera o Caudron para ser exposto no pavilhão riograndense da exposição Farroupilha de 1935, onde eu o vira. A segunda e última experiência aeronáutica que tive foi a contemplação extasiada do dirigível Graf Zeppelin, quando sobrevoou o Parque Farroupilha a baixa altura, majestoso nos céus de POA, no fim da década. Fora essa duas experiências, eu nada sabia de máquinas voadoras, nem pensava sequer em um dia abraçar a carreira de aviador. Eu estudava no 1º ano do curso Pré-Médico, achava que minha vocação era a medicina, e pronto!

A festa aeronáutica promovida pela VARIG foi um sucesso! Houve demonstrações de vôo acrobático feitas pelo piloto alemão nos aviões Buecker Jungman e Jungmeister, que surpreenderam e agradaram muito ao povo que assistia e lotava as dependências do antigo Aeroporto São João, lugar de Porto Alegre onde eu nunca estivera. Empolerei-me no teto da edificação modesta que servia ao despacho de passageiros e dali pude assistir a tudo, inclusive demonstrações de vôos em planadores feitas pelos alunos da VAE. Terminado o “show” desci de onde estava e, junto com meu pai tivemos oportunidade de falar com Otto Meyer a quem cumprimentamos pelo ocorrido. Meyer, muito educado e cordial, agradeceu nossos cumprimentos e, virando-se para mim, disse algo como: “Você não gostaria de ingressar em nossa escola, a VAE, para aprender a voar?”. Não sei mais o que respondi, mas não deve ter sido grande coisa. De qualquer modo a idéia ficou germinando em minha cabeça. Meyer completou:”Procure o Cmte Ruhl em nosso escritório na rua 7 de setembro defronte à Prefeitura. Ele dirige a escola e certamente terá prazer em alistá-lo!”

Em tinha um amigo muito chegado, meu companheiro desde o Ginásio Júlio de Castilhos e que me acompanhava nas inúmeras serenatas que fazíamos às garotas que conheciamos, dono de ótima voz e muito bom violonista, e que também era meu colega no IBGE onde trabalhavamos. Chamava-se Milton Dreyer, e chegou a ser Comandante de Boeing 707 na VARIG, muito anos depois. Milton, como eu, estudava para formar-se em algo de nível universitário, e nunca pensara em aviação. No entanto, conversei com ele sobre a sugestão de Meyer, e afinal nós ambos concordamos em nos associarmos à VAE, pois a coisa era realmente fascinante para jovens como nós.

Procuramos o Cmte. Ruhl no escritório da RG, como nos fora sugerido. Ele nos recebeu cordialmente e nos encaminhou para a Secretaria da VAE, no aeroporto, num fim de semana, pois era quando poderíamos ir até lá. Fizemos nossa inscrição, pela qual teríamos que pagar uma módica mensalidade, e uma “jóia” que consistia em trabalhar 150 horas para a escola, o que a gente terminou fazendo de bom grado e até ultrapassando o limite exigido. Como alunos da VAE recebemos nossa primeira lição, que consistia no seguinte: Havia um planador primário, que não era rebocado por aviões e sim por automóvel, que nas primeiras lições era colocado contra o vento no próprio pátio da escola. O aluno sentava-se no banco de pilotagem e aprendia como manter as asas na horizontal, acionando o “manche”, e sob a ação do vento nos elerões. (o que foi a primeira lição de pilotagem que tive).

A lição seguinte era ser rebocado pela pista, o planador arrastando-se sobre seu patim, e a gente aprendendo a manter a reta com o leme de direção e as asas na horizontal. Depois vinha a ação do profundor, pela qual a gente aprendia a subir alguns poucos metros e pousar. Nesse ponto, recebia-se o brevê A, que era um distintivo de lapela, cor azul, com uma asinha branca estilizada. Finalmente o automóvel corria mais veloz, a gente subia até uns 20 ou 30 metros, o veículo freava, a corda de reboque se desenganchava, e o aprendiz de piloto fazia uma curva de 90 graus e pousava na pista perpendicular, o que dava direito ao brevê B (duas asinhas). Daí em diante, restava pilotar um planador fechado de maior ângulo de planeio, a ser rebocado por avião até uma 500 ou 600 metros de altitude, após o que a corda de reboque era desenganchada no planador e a gente fazia evoluções e finalmente pousava para receber a terceira asinha (brevê C). É interessante notar que as autoridades aeronáuticas do país não tomavam conhecimento desse aprendizado e, assim, não emitiam qualquer brevê ou atestado.

Completado esse treinamento, continuei freqüentando a escola, pois o ambiente me agradava. Havia a possibilidade de iniciar um curso em avião a motor, para a obtenção da licença de Piloto Privado (o que na época se chamava de Piloto de Recreio ou Desporto), porem isso era caro para minhas posses. Por fim, já meio inclinado para a carreira aviatória, decidi vender um acordeão que possuía para poder pagar o curso de pilotagem. E assim foi feito, e o cobiçado brevê foi obtido no decorrer do ano 1940. Eu havia acumulado menos de 30 horas de vôo. Meu companheiro Milton, alistou-se no CPOR da Aeronáutica, que fora criado nesses dias; foi declarado oficial e ficou na FAB até terminar a guerra e ser afastado. Entrou então para a VARIG, onde eu já estava, fez carreira até o 707, e continuamos amigos até sua morte por razões de saúde, anos depois.

Em fins de 1940 e começo de 1941, fiquei sabendo que o DAC no Rio de Janeiro havia criado um curso para formação de instrutores de pilotagem, subvencionado pelo governo (exceto estadia e alimentação dos alunos). Era preciso passar por uma seleção, possuir o brevê de Piloto Privado e ser recomendado por uma escola de aviação. A VAE recebera notícia desse fato, e Ruhl concordou em recomendar-me. O curso seria ministrado pelo Aero Clube do Brasil, em Manguinhos, Rio de Janeiro, e os candidatos tinham que se apresentar ao Aero Clube em poucos dias. Como a VAE me recomendaria, Ruhl achou melhor dar-me algumas noções adicionais de pilotagem para que estivesse melhor preparado ao começar o curso no Rio. Para tanto chamou-me para um vôo com ele no Buecker Jungman (no qual eu nunca voara). Fui em direção ao avião e encontrei-me com Ruhl que vinha envergando um paraquedas. A VAE tinha só um paraquedas, um velho e provavelmente inútil equipamento trazido da Alemanha há anos e que nunca fora revisado na VAE. Achei aquilo estranho, pois nunca vira alguém usando o tal paraquedas. Eu não sabia que tipo de manobras nós iríamos fazer, e embarquei na parte traseira do avião sem que houvesse maiores explicações. Prendi meu cinto de segurança como sempre fazia, frouxamente, e fiquei aguardando os acontecimentos.

Ruhl decolou e subiu para cerca de 1000 metros sobre a pista, fazendo algumas curvas com o dócil avião. Afinal colocou o avião em vôo reto e nivelado, reduziu completamente o motor, virou-se para trás e gritou para mim: “ESTÁS AMARRADO?!”. Eu estava, à minha maneira, um tanto frouxa, mas respondí gritando: “SIM!”. Então sem aviso prévio e sem qualquer comentário, Ruhl pôs o avião em, vôo de dorso. Eu, que não esperava aquilo, projetei-me para fora da cabine uns bons 30 centímetros, que era o que permitia meu cinto uma vez esticado, agarrando-me desesperadamente às laterais da pequena nacele, simplesmente apavorado ante a perspectiva de sair pelos ares voando como um pássaro. Aquilo durou uns 30 segundos, findos os quais ele pôs o avião em vôo normal, fez uns estóis e um parafuso e, finalmente pousou. Sai do avião com as pernas bambas, e mudo de pavor. Ruhl fez uns poucos comentários sobre as manobras, que eu não ouvi nem entendi, pois ainda estava em estado de choque. Estava agora, na opinião dele, devidamente preparado para enfrentar a seleção no Rio!

Durante todo o tempo em que fui instrutor de vôo, na VAE e depois nos aviões da VARIG, jamais coloquei minha segurança acima da do aluno. Sempre o aluno vinha em primeiro lugar, depois eu, e o mesmo faziam em geral todos os demais instrutores. Nunca consegui explicar aquela atitude de Ruhl, usando em si o único paraquedas existente! Será que ele achava que sua vida valia mais do que a minha? Que precisava ser preservada porque ele era mais experiente e fazia mais falta? Ou porque era casado, tinha filhos e eu não? Nunca consegui explicar, tanto mais que ele foi meu instrutor em várias ocasiões, nos F-13, no Dragon Rapid, nos Eletrinhas e nos DC-3, e sempre foi cordial, bem humorado, e nunca mais usou paraquedas!

Afinal estava pronto para seguir ao Rio de Janeiro. Eu lá estivera no ano anterior, viajando de carro por estradas inimagináveis, para assistir à primeira comemoração da Semana da Asa, instituída nesse ano e patrocinada pelo Aero Clube do Brasil, em Manguinhos. Foi uma festa muito bonita, com a participação de uma delegação da VAE, quando Ruhl fez evoluções com planadores (o que era novidade no Rio) e minha prima Nely fez acrobacias com um Buecker da escola, sendo talvez a primeira mulher a executar acrobacias aéreas no Brasil. Infelizmente a festa foi encerrada tragicamente com um acidente em que dois aviões se chocaram, um Buecker do aeroclube e um Muniz do interior de São Paulo que vinha com dois pilotos participar da festa. O piloto do Buecker, que participava duma prova de “caça aos balões”, na qual era importante fazer tudo muito depressa, não viu o Muniz que se aproximava para pousar e ambos chocaram-se com perda total. A festa acabou e todos nos retiramos. Eu estava hospedado num modesto hotel do Flamengo, mas como travara conhecimento com um rapaz da minha idade, oriundo do Mato Grosso e que era aluno do aeroclube, chamado Arsênio Cardoso, mudei-me para a pensão dos pais dele, no Catete, que era mais barata e incluía refeições, a Pensão Cardoso. Arsênio tornou-se um bom amigo e foi meu colega no curso de instrutores que fizemos no Aero Clube do Brasil, em 1941. Infelizmente ele morreu num acidente em que era Comandante de um DC-3 (ao que me consta), anos depois.

Viajei, portanto ao Rio de Janeiro num DC-2 da Panair, pois meu pai tivera a generosidade de comprar para mim uma passagem aérea, o que era coisa extraordinária. Eu precisava de apoio financeiro para sobreviver no Rio por pelo menos um ano, pois o aeroclube não pagava estadia ou refeições. Meus pais tinham um padrão de vida modesto e o pagamento de uma mesada para o filho viver um ano no Rio não era coisa simples. De qualquer modo eles deram um jeito e puderam dar-me essa grande ajuda, pelo que fiquei eternamente grato a meus queridos pais. No Rio, fui direto para a Pensão Cardoso que já conhecia e que era barata e bem localizada para o acesso à sede do aeroclube, no centro da cidade à rua Álvaro Alvim. Lá estive, inscrevi-me no Curso de Monitores, fiz o exame de seleção no qual fui aprovado, e estava pronto para começar.

O aeródromo de Manguinhos, onde transcorreria o curso, era muito distante da Pensão Cardoso no Catete.
Por isso achei mais conveniente morar em algum lugar perto do aeroclube, o que seria na melhor das hipóteses o bairro Bonsucesso. Como a Avenida Brasil estava em construção, uma moradia em Bonsucesso ficaria bem acessível por esse caminho. Estive, portanto em Bonsucesso e descobri uma casa para alugar, na chamada Avenida Paris (uma rua humilde e sem calçamento, apesar do nome ambicioso). A casinha era geminada com outra onde viviam os donos, um casal idoso de portugueses, muito simpáticos e acessíveis, com quem conversei e acertei um contrato verbal de aluguel por um ano. A casa tinha dois quartos, uma cozinha e um banheiro, e era barata, com a possibilidade de incluir refeições e lavagem de roupas. Eu pensava também em procurar alguns colegas que quisessem morar ali e dividir as despesas, o que realmente aconteceu. Moramos ali, até o fim do ano, eu e mais três colegas, um do Mato Grosso e dois gaúchos, na mais perfeita harmonia e amizade.

E o Curso de Monitores? Ora, transcorreu de forma um tanto deficiente. O Aero Clube assumira a responsabilidade de administrar o curso da melhor forma possível, atendendo às exigências da DAC que o custeava, mas no entanto mais se preocupavam os dirigentes com os sócios do Clube do que com os um tanto desprezados alunos-monitores. Nós ficávamos sempre em segundo plano. O Aero Clube possuía vários aviões em suficiente bom estado, mas nós só podíamos voar nuns velhos e carcomidos De Havilland Moth Trainers, biplanos arcaicos que haviam servido muitos anos atrás, à antiga Aviação Militar. Os motores de 4 cilindros não eram invertidos e por isso ficavam na frente do piloto, impedido sua visão. Os painéis de “instrumentos” só continham um altímetro antiquado e uma velha bússola magnética. O velocímetro estava instalado fora do avião, e consistia numa placa graduada em quilômetros por hora, escritos com números grandes para serem visíveis ao piloto, e presa a um montante vertical da asa esquerda. Sobre essa placa deslocava-se um ponteiro rústico, com uma plaqueta perpendicular ao vento resultante e preso a uma mola. Com o deslocamento do avião, o vento relativo empurrava o ponteiro para trás, contra o efeito da mola, e o piloto virava a cabeça para a esquerda e podia ler na escala a velocidade aproximada em que se deslocava. Não podia ser mais primitivo, elementar e impreciso. Voamos nesses aviões até aproximadamente a metade do curso, quando então não deu mais! Os arcaicos aviões foram sucateados e nós ficamos sem avião para completar o curso.

A administração do Aero Clube não tomou qualquer providência para resolver o problema da falta aviões para nosso curso. Então, em desespero de causa, formamos uma pequena comissão de alunos (eu junto) e fomos à DAC no Santos Dumont para falar com o Cel. Azevedo, que era o Diretor de Operações do órgão e diretamente ligado à realização do Curso de Monitores. Fomos recebidos com toda a cortesia. A história que contamos surpreendeu o Coronel e, como era seu costume, tomou imediatas providências para sanar o problema, pelo que recebemos em Manguinhos 4 excelentes e novos aviões biplanos Muniz 7, com os quais voamos até o final do curso, fazendo inclusive as acrobacias previstas. Aliás, tivemos mais uma oportunidade de recorrer ao caro Cel. Azevedo: foi quando nossa gasolina acabou (porque o pessoal do Aero Clube a usava) e ninguém fez qualquer coisa para repô-la. Novamente recorremos ao Coronel e logo em seguida recebemos vários tambores de gasolina, que passamos a guardar com zelo.

E assim, finalmente, concluímos o curso. Tivemos uma solenidade de formatura com a presença do primeiro Ministro da Aeronáutica, Sen. Salgado Filho, de cujas mãos recebi meu diploma, pois fora o primeiro da turma. Desocupamos a casa onde morávamos em Bonsucesso, despedimo-nos do casal português de quem ficáramos amigos, e cada um foi para seu lado. Eu havia escrito a meu pai, pedindo que falasse com Otto Meyer, que conhecia da Sociedade Filatélica do RGS, sobre minha pretensão de empregar-me na VARIG e na VAE, ao que ele me respondeu dizendo que falara com Meyer e que este queria encontrar-se comigo no Rio, pois estava para viajar para essa cidade, e aguardaria minha visita nos escritórios da Condor, à Av. Rio Branco, dentro de uma semana. Satisfeito, pois, voltei à minha conhecida Pensão Cardoso, onde fiquei aguardando o dia de falar com Meyer. Afinal chegou o dia e eu me apresentei nos escritórios luxuosos da Condor à Av. Rio Branco, no centro do Rio.

Meyer recebeu-me cordialmente, ouviu atentamente minhas pretensões e afinal disse que a VARIG realmente precisaria de um ou dois pilotos, pois havia intenção de aumentar as freqüências de vôos no RGS (Nessa época a RG contava com apenas cinco pilotos Comandantes: Ruhl, Goetz, Lau, Greiss e Stunde. O resto dos tripulantes era constituído de mecânicos/rádio, que voavam como supostos co-pilotos, mas que não tinham qualquer treinamento de pilotagem). Meyer aceitou-me como candidato a piloto, e disse que voltando a POA procurasse nos escritórios da VARIG (agora na Av. Borges de Medeiros) a pessoa de Ruben Berta, que era uma espécie de Gerente. Disse ainda algo que não esqueci: “Você não é daqueles que pensa em comprar uma ‘baratinha’ e andar por aí com mulheres, não é?”, ao que eu respondi com a maior seriedade: “Não senhor! Absolutamente!”. Parece que a primitiva Administração da RG tivera uma experiência desagradável nos tempos do hidro-avião Atlântico, com tripulantes, na cidade balneária de Torres. Constou que Meyer, que tinha uma casa em Torres, tivera a idéia de, no verão, executar um vôo por semana àquela praia, pousando o avião no rio Mampituba. Os tripulantes, desembarcados os passageiros, teriam convidado algumas “garotas” para um vôo local, com champanha a bordo, e a coisa teria evoluído para uma bacanal. Não sei se isso foi verdade, mas talvez algo tenha ocorrido que fez com que durante muito tempo houvesse por parte de Berta uma certa prevenção contra pilotos.

Apresentei-me portanto a Ruben Berta nos escritórios da Administração RG em POA. Eu não o conhecia e não tinha a menor idéia de como iria receber-me. Pois foi de forma carrancuda, um tanto hostil. Ouviu minha história de má vontade, e disse num tom irritado: “Você não pense que vai botar a bunda em nossos aviões tão cedo! Você vai para a graxa por muito tempo! Apresente-se ao Chefe das oficinas no aeroporto!”. E com isso deu o assunto por encerrado, Fiquei um tanto surpreso e magoado com aquela recepção hostil, muito diferente da que tivera de Meyer, no Rio. Achei que aquele “alemão” gostaria que eu batesse os calcanhares, estendesse o braço direito e gritasse: “Heil Hitler”, mas limitei-me a um modesto “Sim, senhor!”.

Essa atitude de Berta preocupou-me um pouco, porem essa preocupação foi totalmente descabida, pelo menos até fins da década de 1960, pois Ruben Berta foi um dos melhores amigos que tive. Tratou-me e à minha mulher, sempre com muita cortesia, amizade e consideração, até uma intriga contra mim a que ele deu ouvidos, quando eu era Presidente da REAL em São Paulo. Antes disso ele chegou a extremos como sair de casa nas primeiras horas da madrugada, em seu automóvel, para buscar o corpo de meu irmão que morrera num acidente na estrada para Tramandaí. Isso porque recebera uma notícia sobre o acidente. Andou comigo e o corpo de meu irmão até o final do enterro, sempre amigo e consolador. Depois, quando tive problemas na retina de meu olho esquerdo, mandou a empresa pagar todas as despesas do tratamento e da cirurgia que fiz em Buenos Aires. Foi absolutamente exemplar e confiável, até aquele lamentável episódio da intriga, pouco antes de sua morte no Rio.

A VARIG de um modo em geral sempre me tratou bem; não tenho queixas, salvo um ou outro pequeno incidente sem maior importância. E na realidade, consegui “botar a bunda” em seus aviões muito antes do esperado. Fiquei na oficina fazendo um estágio requerido na época por uns cinco ou seis meses, até que um dia Carlos Ruhl entrou em meu local de trabalho e disse: “Bordini, prepara um F-13, que vamos voar!”. E aí começou minha carreira de piloto de avião na RG. Inicialmente e durante pouco tempo, eu voava como co-piloto/mecânico/rádio-operador, e fazia tudo menos decolar e pousar. Após algum tempo voando como co-piloto/mecânico, passei a voar no posto da esquerda, no comando do avião, tendo sempre como “co-piloto” o saudoso, competente e cordial Cmte. Franz Xavier Greiss. Sua única tarefa era ajudar na orientação visual nas rotas do RGS, pois ele conhecia o Estado muito bem, tendo escolhido pontos de referência visuais nas rotas que variavam do cruzamento de um rio por uma ponte, um mato de eucaliptos de forma característica ou até, pasmem, uma velha e enferrujada máquina agrícola abandonada no meio do campo, que existia (será que ainda existe?) na rota entre Quaraí e Uruguaiana, que também servia de referência navigacional nos vôos da primitiva VARIG!

Um dia, não muito remoto, fui declarado Comandante de F-13 e passei a voar acompanhado de mecânicos, à guisa de co-pilotos, que nada sabiam do vôo em si, mas que eram muito úteis nas operações em terra. Eles ostentavam à esquerda do peito, um distintivo metálico com a asa da VARIG e a palavra MECHANICO na parte inferior. Nós os Comandantes ostentávamos o mesmo distintivo, porem com a palavra COMMANDANTE. Nosso “uniforme” era um traje simples de casimira azul escuro, sem qualquer divisa ou galão, encimado por um quepe com o emblema da RG. O surgimento de galões ou divisas nas mangas do casaco e nos ombros das camisas ocorreu bem mais tarde, quando foi criado um padrão que, ao que parece, não vigora mais hoje, pelo que tenho visto. Antigamente os co-pilotos tinham duas divisas na manga ou no ombro. Os comandantes de linha doméstica três divisas, e os comandantes de linhas internacionais, quatro divisas. Hoje, vejo pilotos que comandam avionetas ou até helicópteros, com quatro divisas nas mangas ou nos ombros! Parece que cada um faz o que bem entende, não mais existindo padrões. Tipicamente brasileiro: improvisação!

53) Um Curtiss C46 da VARIG “pousa” em Pelotas, RS

Curtiss C-46

Em fins da década dos anos 40, um avião Curtiss C-46 da RG decola de Porto Alegre com destino a Pelotas. Era verão e o tempo estava bom. Quando o avião chegou ao Aeroporto de Pelotas, o piloto fez o devido circuito e entrou na reta final para o pouso normalmente. No entanto, quando chegou à pista “pousou” com o trem de pouso recolhido, “de barriga”, levantando uma grande polvadeira. Ninguém se machucou. Logo que soubemos do acidente em POA, eu, Paulo Dietzold e Ruben Berta partimos num cargueiro para Pelotas, levando algum material de que poderíamos precisar, tal como macacos hidráulicos e ferramentas. Eu e Dietzold naquela época, fazíamos investigações de causas de acidentes, e Ruben Berta foi junto porque  na época se envolvia com todos os detalhes da empresa.

Na chegada em Pelotas, interrogamos a tripulação que ainda lá estava. Os pilotos foram unânimes em declarar que haviam arriado o trem na reta final, conforme o “check” antes do pouso, e que só poderiam atribuir o acontecido a uma falha do sistema do trem de pouso, que recolhera acidentalmente. Face a isso, não havia outra coisa a fazer, de nossa parte, senão erguer o avião para examinar o sistema do trem. O certo teria sido mandar vir de POA mais homens e recursos, para levantar aquele pesado avião do solo e poder abaixar e recolher seu trem. Em vez disso, porem, resolvemos eu e Dietzold tentar o absurdo: levantar o avião nós mesmos! Berta, cuja saúde cardíaca não era boa, ficou por ali, assistindo nosso trabalho, sentado numa poltrona do avião que havíamos removido para que ele repousasse.

Trabalhamos com grande esforço físico, durante o resto do dia e toda a noite seguinte. Colocávamos macacos pequenos debaixo do avião, levantávamos um pouco, calçávamos com madeira, colocávamos um macaco maior, e assim por diante, até que chegássemos a uma altura suficiente para arriar o trem, o que nos obrigou a apoiar o avião em tambores vazios de gasolina e muitos caibros de madeira. Arrastávamos entre os dois aquelas coisas pesadas e as colocávamos debaixo das asas, enquanto Berta dormia sobre a poltrona colocada na pista, ao relento. Nós tínhamos requisitado grossos caibros de madeira, tambores vazios e macacos de vários tamanhos com a Viação Férrea local.

Afinal, exaustos e imundos, após trabalharmos pesado por mais de doze horas, inclusive toda a noite, felizmente sob o luar, contemplamos nosso trabalho num breve descanso, observando aquele grande e pesado avião, com o trem de pouso recolhido, elevado com o esforço inaudito de somente duas pessoas, quando, no clarear do dia, começou a soprar um ventinho que a princípio foi fraco, mas que foi se tornando algo mais forte e preocupante. Pois foi como temíamos: o pesado avião balançou-se sobre os apoios que o sustinham e, para nossa consternação, veio abaixo, voltando à posição em que estivera no dia anterior, com alguns estragos a mais. Ficamos desolados, mas nada mais podíamos fazer, a não ser o que deveríamos ter feito logo de início: mandar vir de POA pessoal a materiais suficientes para a tarefa, o que afinal foi feito com o resultado esperado.

Depois de levantado o avião, constatou-se que o sistema do trem de pouso estava funcionando perfeitamente e que, sem dúvidas, os pilotos tinham esquecido de arriar o trem, a despeito de sua experiência com aviões que tinham trem de pouso escamoteável, e da lista de cheques que se fazia obrigatoriamente na reta final. Coisas da aviação!

52) Aeroportos

Aeroporto São João – 1930

Desde que surgiram os primeiros aviões na história da humanidade, sabia-se que para alçarem vôo eles precisavam de uma extensão de terreno plano para adquirirem velocidade que os faria voar. Isso entre outras coisas foi copiado das aves, especialmente as mais pesadas, que também precisam correr no solo para obterem a sustentação requerida em suas asas. Durante a primeira guerra mundial, a aviação sofreu um grande impulso, tendo sido fabricados centenas de aviões, a maioria de combate. O transporte via aérea ainda estava por surgir. De qualquer maneira, soube-se que seria necessário destinar áreas pré-escolhidas para que os aviões pudessem decolar e pousar. A destinação dessas áreas para esse fim, porem, implicava em sua localização adequada, mais despesas de eventual aquisição e aprimoramentos.

Face à dificuldades desse tipo, e considerando que o mundo possui mais água do que terra, surgiu a idéia de que os aviões poderiam ou até deveriam decolar e pousar n’água, especialmente os mais pesados. Começou-se então a fabricar hidro-aviões, e a utilizá-los no transporte de correio e pessoas. Surgiram empresas transportadoras (entre elas a VARIG) utilizando hidros em suas rotas, podendo citar-se como exemplo a colossal PAN AMERICAN, que começou ligando as três Américas com um pequeno hidro, sob o nome de NYRBA (NewYork-Rio-Buenos Aires) e chegou a fazer vôos transoceânicos com os memoráveis “Clippers”.

Mas à despeito de haver mais água do que terra no mundo, os seres humanos que poderiam ocupar lugares dentro de aviões de transporte não vivem nas águas e sim na terra. Verificou-se então que para alimentar os cofres dos exploradores do futuro transporte aéreo era necessário traçar rotas para os aviões que os colocassem ao alcance das pessoas que iriam viajar. E para isso, essas rotas tinham que começar e terminar em lugares onde os aviões, agora terrestres, poderiam executar suas corridas de decolagem e de pouso, ou seja, aeroportos terrestres.

O que teria existido primeiro, o avião com rodinhas ou o aeroporto? Isso é como perguntar o que existiu primeiro, o ovo ou a galinha? Mas vou arriscar um palpite: Acho que primeiro surgiu o “aeroporto”, depois o avião com rodinhas, pois o “aeroporto” começou sendo uma campina natural, que não tinha que ser fabricada, diferentemente do avião, que o tinha. Desde o tempo da primeira guerra que os “aeroportos” eram simples extensões de campo, sem limitações a não ser cercas ou árvores, tudo natural e já existente.

Assim sendo, em boa parte do mundo começaram a surgir desses “aeroportos”, que aguardavam seus aviões terrestres. Como na Alemanha se fabricavam aviões, um dos primeiros “aeroportos” foi o de “Tempelhof”, em Berlin, numa campina junto a um templo (daí o nome) e um cemitério. Nos Estados Unidos, desde cedo a Força Aérea começou a transportar correio em aviões biplanos monomotores. O motor desses aviões falhava com freqüência, o que fazia seu piloto escolher uma pista de pouso onde fosse possível pousar sem acidente. Depois, se tivesse condições, o piloto saia pelos campos afora com o saco de correio às costas até encontrar uma estrada ou ferrovia, cujos maquinistas tinham ordens federais para parar o trem em qualquer lugar e dar carona ao piloto, não por solidariedade humana, mas sim pela importância do correio, que tinha que prosseguir avante, a qualquer custo.

No Brasil os primeiros passos da aviação de transporte foram dados pela VARIG, no RGS, como sabemos, com um hidroavião. Isso durou pouco tempo, pois o avião logo seria substituído por aeronaves com rodinhas. Mas onde decolar ou pousar? Havia duas situações, pelo menos: Um aeródromo em Porto Alegre, onde era a sede da RG, e alguns outros onde fosse interessante por razões econômicas operar. Suponho que a precária administração da VARIG tenha influído sobre a localização desses aeródromos, pois isso interessava à empresa, junto a órgãos governamentais que poderiam influir de uma forma ou de outra na concretização das pistas. Não havia na época, que eu saiba, um órgão federal centralizador dessas ações, pois isso só aconteceu mais tarde, com a criação de um Departamento subordinado ao Ministério de Viação e Obras Públicas, que passou a cuidar, de forma elementar, desses assuntos e de outros mais relativos à aviação civil no país.

Independentemente disso, havia órgãos estaduais ou municipais também interessados, cuja ajuda em alguns casos, foi fundamental. Foi o caso, por exemplo, do futuro Aeroporto de Porto Alegre, que inicialmente se chamou “São João”, pois esse era o nome do bairro perto de onde ele se situava. Ali, entre os limites da cidade e a margem do rio Gravataí, existia uma grande várzea, alagadiça, pertencente ao Governo do Estado, onde a Brigada Militar criava seus cavalos e os punha a pastar. Pois essa várzea foi em parte drenada e duas pistas foram demarcadas com madeira caiada, uma pequena construção de alvenaria foi feita numa extremidade, e estava constituído o “Aeroporto” de Porto Alegre (ou São João). Para aí foram transportados os primitivos aviões de passageiros da VARIG, que haviam vindo da Alemanha por navio, parcialmente desmontados.

A VARIG (Meyer ?) projetou linhas a partir de POA, certamente levando em conta o potencial econômico dos futuros e eventuais passageiros. O RGS era um estado agro-pastoril, sua economia girava, principalmente, em torno das atividades “ganaderas” da metade sul do estado. Então provavelmente os futuros ocupantes dos aviões da RG seriam estancieiros ricos dessa região, a despeito de isso representar pouca gente. Mas isso não importava muito porque para “lotar” um Junkers F-13 bastavam 5 passageiros! Então, dentro dessa maneira de pensar, foram escolhidos e demarcados alguns dos futuros “aeroportos do sul do Estado: Pelotas, Bagé, Santana do Livramento e Uruguaiana, ou seja, uma linha de pistas de pouso mais ou menos paralela à linha divisória Brasil-Uruguai, a partir de Pelotas. As pistas de Pelotas e de Uruguaiana eram razoavelmente adequadas, se bem que alagadiças. Bagé e Livramento porem, eram pistas naturais sobre coxilhas, de escasso comprimento, o que tornava a operação, mesmo com o F13 crítica especialmente com mau tempo. A pista de Livramento, em especial, era péssima. Desenvolvia-se sobre o lombo de uma coxilha formando quase um “L”, com ambas as cabeceiras na parte baixa do morro, de sorte que a gente iniciava a decolagem morro acima, sem visibilidade pois o motor do avião estava na frente de nossos olhos, e tinha que girar a proa uma 30 ou 40 graus afim de continuar dentro da “pista”, agora morro abaixo até uma cerca que havia na frente! Não faço idéia de quem foi o imbecil que escolheu essa localização, tanto mais que anos mais tarde eu localizei outra coxilha, ampla e reta em relação ao vento predominante, de suficiente comprimento, mais próxima à cidade, com piso rochoso e liso, e que passou a ser o aeroporto de Livramento até algum tempo depois, pois afinal as operações ali foram transferidas para uma pista melhor,em Rivera, Uruguai.

Fora do RGS, houve algumas iniciativas por parte da aviação militar, do Exército e da Marinha, que começaram a operar em Bacacheri (PR), Cumbica (SP), Afonsos e Galeão (RJ). Em SAO, talvez por pressão da empresa paulista VASP, uma colina ao sul da cidade foi transformada num planalto (alt. cerca de 800 metros) mais ou menos circular, onde os aviões decolavam e pousavam contra o vento, em qualquer direção. Como essa colina fora coberta por uma florzinha chamada Congonhas do Campo, o projetado aeroporto passou a chamar-se “Congonhas”.

No Rio de Janeiro, fora das instalações militares, cogitou-se de transformar em aeroporto o prolongamento do aterro do Flamengo, resultante do rebaixamento do morro do Castelo, com a construção de algumas edificações e de uma pista mais ou menos N-S, de dimensões acanhadas, que passou a chamar-se Aeroporto Santos Dumont. Havia mais uma área de grandes dimensões na ilha do Governador. Aí se instalou uma dependência da Aviação Naval, que chegou a organizar uma fábrica de aviões (a primeira no Brasil!), que produzia sob licença alguns tipos de aviões alemães, entre eles o famoso Focke-Wulf “Stieglitz”, um dos melhores aviões acrobáticos que já se fabricou. Essa área transformou-se no Aeroporto do Galeão (deve ter havido um galeão português ou espanhol ancorado por ali, noutros tempos!).

Além do Rio de Janeiro, para o norte e nordeste, não houve mais aeroportos no Brasil, a não ser alguns anos mais tarde, especialmente quando, durante a 2ª Guerra Mundial, ou melhor a partir de 1941, quando os USA entraram na guerra e precisavam enviar centenas de aviões de transporte e de combate à África e à Europa. As costas nordestinas do Brasil eram o local mais próxima da costa da África e por isso interessavam aos USA como escala para seus aviões. Houve pressão por parte dos USA e o governo brasileiro, até então ou um tanto germanófilo, ou simplesmente hesitante, cedeu às pressões e se declarou a favor dos aliados, arrendando aos americanos as costas nordestinas, nas quais eles construíram bases com todos os recursos da época, pistas pavimentadas, controle de tráfego aéreo, alojamentos, hangares e depósitos de peças sobressalentes. Esses “aeroportos”, terminada a guerra, passaram a servir à aviação de transporte brasileira, equipando cidades tais como Fortaleza, Recife, Natal, Salvador, com algo que nunca haviam tido nem poderiam vir a ter a curto prazo.

Tive ocasião de freqüentar a Base (então norte-americana) de Parnamirim, Natal, RN, no ano de l946, quando fui lá duas vezes buscar avião C-47 e peças sobressalentes. Apesar de já estar sendo abandonada pelos americanos, a Base era um esplendor de recursos, especialmente aos olhos de quem, como nós, que não estavam acostumado à abastança. Havia de tudo à farta, até super-mercado (o que eu não conhecia ainda). Nossos alojamentos eram enormes barracões muito confortáveis, com beliches e colchões macios, onde as janelas não tinham nem tampos nem vidros. Somente uma tela fixa contra mosquitos, pois fazia sempre calor. Nos toaletes, amplos e arejados, com chuveiros, pias e latrinas, não havia separações. As pessoas ou tomavam banho ou evacuavam coletivamente, inclusive conversando. Tudo, porem, era separado entre “brancos” e “pretos”. Havia latrinas para brancos e latrinas para pretos, restaurante para brancos e idem para pretos. Tudo igual e de boa qualidade. Os habitantes de Natal, em geral gente humilde, haviam sido empregados pelos americanos para tarefas simples como carregamento de aviões, abastecimento, limpeza em geral, etc. Estavam bem vestidos com roupas de trabalho, bem alimentados e aparentemente felizes. Foi a primeira vez que vi operários usando luvas grossas para proteger as mãos, coisa que em nossa terra jamais acontecera. Ah, e é claro: os nordestinos empregados na Base usavam as instalações rotuladas com a palavra “COLORED”, mesmo que para nossos olhos eles não fossem “pretos”.