segunda-feira, 11 de junho de 2012

27) A viagem aos USA com o colega Erni Peixoto

Douglas DC-4

No ano de 1951 eu era Diretor do Ensino na RG e tinha um colega muito estimado, o competente e trabalhador Erni Peixoto, Diretor do setor de técnicas eletrônicas e de comunicações da empresa. Lá pelas tantas ficamos sabendo que o Governo Norte-Americano, através de sua CAB (Civil Aeronautics Board), estava oferecendo bolsas de estudo a pessoal da aeronáutica civil brasileira, com estágios e visitas em fábricas e companhias de transporte aéreo daquele país, situadas em várias cidades e localizações do território dos USA. Ficamos, eu e Peixoto, muito interessados naquela oportunidade de aprimorar nossos conhecimentos na área, e, com a aquiescência de Berta (pois os americanos não pagavam nem estadia, nem alimentação, nem viagens; cabia à VARIG pagar tudo, por dois a três meses!). Levávamos algum dinheiro nosso e da VARIG, pois tínhamos a esperança de comprar carros nos USA e trazê-los como bagagem não acompanhada, de navio , pois comprar um automóvel no Brasil da época só era possível se fosse bem usado, mesmo assim caro. No entanto, nossas esperanças foram frustradas, pois o Governo Brasileiro proibiu tais “bagagens” antes de nossa viagem. Fizemos ainda uma tentativa, falando com “Jango” Goulart, que era Ministro e tinha influência. Éramos conhecidos de Jango porque ele costumava freqüentar nossas instalações em POA, onde cuidávamos de um seu pequeno avião. Jango nos disse que obteria uma licença especial para nós dois trazermos carros como bagagem; que nós fizéssemos contato com a Embaixada Brasileira em Washington antes de retornarmos ao Brasil, pois a tal licença lá estaria, o que infelizmente não aconteceu, não houve licença alguma e não pudemos trazer os desejados carros.

Preparados, com dinheiro no bolso e muito entusiasmo, partimos eu e Peixoto num velho DC4 da PAA, com várias escalas, rumo a Miami. O avião era “sobra de guerra”, porem era o melhor que existia na rota e na época. Estava lotado, e foi uma viagem muito cansativa, mas afinal desembarcamos em Miami, onde nos esperavam dois representantes da CAB, que nos trataram como VIPs, fazendo apenas confusão com nossos nomes. O Peixoto era Mr Bordone, e eu Mr Peioto. Fomos para um motel defronte às instalações da PAA, que faziam parte de nosso programa de estágio, que era muito barato e aconchegante, pois era verão e Miami no verão era fora de temporada. Nessa época, antes da invasão dos adversários cubanos de Fidel, Miami tinha no verão apenas cerca de 200 mil habitantes, tudo era muito barato e os hotéis estavam vazios.

Logo no primeiro dia um dos americanos nos convidou para almoçar e nos levou a um restaurante de certa categoria. Sentamos e veio a garçonete com o cardápio. Meu inglês de então era fraco, e eu me apoiava bastante em Peixoto, que tinha um inglês melhor do que o meu. Com o cardápio nas mãos, para mim tudo o que estava escrito era grego. Não identifiquei nenhum dos pratos oferecidos. Ouvi que o americano e Peixoto faziam seus pedidos, mas não os identifiquei. Apontei então para um prato qualquer, sem saber o que era, e a garçonete, felizmente se deu por satisfeita e afastou-se. Aí o americano levantou-se para telefonar, e ficamos eu e Peixoto aguardando a comida, que não demorou: a garçonete colocou algo na frente de Peixoto, que não identifiquei, outro prato desconhecido no lugar do americano e, ante mim, um belo macarrão ! Fiquei exultante ! Acertara sem querer, pois eu gostava de macarrão. Aí volta o americano, senta-se, olha ao redor com aparência de intrigado e diz algo que não entendi. Soube depois pelo Peixoto que ele dissera: ”Interessante! Ela colocou para ele (eu, entenda-se) o macarrão que eu pedi e para mim isto que não sei o que é !” E assim o americano teve que comer algo que até hoje não sei o que foi, e eu, inocentemente, comi o macarrão dele!

Em Miami passamos a primeira semana visitando e ouvindo explicações nas instalações da PAA, e no sábado fomos ao centro da cidade, para olhar as vitrines e nos maravilharmos com a abundância de coisas que simplesmente não existiam ou não se podia comprar no Brasil. Não resisti e comprei um gravador de som, pois pretendia gravar comentários de nossa viagem, ao invés de escrevê-los. Gravadores nessa época eram grande novidade, grandes e pesados. Usei esse gravador enquanto viajávamos para NYC, e quando lá chegamos, no quarto de um hotel na rua 46, liguei o gravador para gravar algumas impressões. Qual não foi minha surpresa, quando o gravador queimou-se e parou de funcionar, pois ali naquela zona de NYC, sem que eu o soubesse, a voltagem da rede era 220V e o gravador estava ajustado para 127V. Foi um inesperado e grande transtorno em meus projetos. Ainda em Miami fizemos algo que no Brasil daquela época era impossível: Visitamos algumas agências que vendiam automóveis novos ou usados. Isso porque, baseados na promessa de Jango, esperávamos trazer para o Brasil dois carros, e Peixoto havia decidido comprar um em MIA, no qual viajaríamos pelos USA. Assim, entramos numa agência onde encontramos um Ford V8 quase novo, lançamento do ano na versão Fordomatic, que nos encantou e que Peixoto comprou à vista. Os papeis do carro e a respectiva placa (só usavam uma) iriam demorar alguns dias, por isso o vendedor nos deu uma declaração de que nos vendera o carro, dizendo que os papeis e a placa seriam remetidos pelo correio, para a posta restante da cidade onde estaríamos dentro de uma semana. Achamos isso um tanto estranho, mas aceitamos a proposta, baseados no sistema de confiança que já estávamos testemunhando lá naquele país. Na realidade, recebemos a placa e os papeis conforme o prometido e eu mesmo coloquei a placa, sem os lacres que usamos aqui. No dia combinado, saímos com destino a NYC, pela US 1, passando por vários lugares interessantes e pernoitando num lugar à beira de uma lagoa, onde, ao caminharmos pela rua levávamos sobre a cabeça uma enorme coluna de mosquitos que simplesmente nos queriam devorar. Fomos depressa para o hotel, onde havia telas nas janelas. O nome do lugar? Pois era “Mosquito Lake !”

Ah! – antes que esqueça: Tínhamos decidido que guiaríamos o carro com todo o cuidado, obedecendo rigorosamente às regras de trânsito americanas. Nossa licença de motorista era a brasileira, que poderia provocar encrencas com a polícia. Por isso resolvemos, em MIA, fazer exames e obter a licença local, o que fizemos sem dificuldades, sendo apenas surpreendidos com a discriminação racial que existia nessa época, principalmente no sul do país, como era o caso da Flórida. Na polícia onde fizemos os exames para obter as licenças, havia filas para tudo, porem as filas era separadas: uma para “whites”e outra para “coloreds”. Era chocante!

Chegamos em NYC num sábado, Peixoto guiando o carro e eu navegando. Usamos esse sistema durante todos os 12000 Km em que percorremos os USA e o Canadá. Um guiava e o outro navegava com os excelentes mapas que havíamos obtido no AAA e os que apanhávamos nos postos de gasolina. Revezávamos a condução do carro. Cada um guiava 500 milhas, enquanto o outro navegava, e nunca tivemos problemas. Se tínhamos que dobrar à esquerda ou direita, o navegador avisava o condutor três ou quatro quadras antes, de forma que este entrava na devida “lane” com satisfatória antecedência.

No caminho para NYC havíamos consultado o excelente guia de hotéis do AAA e selecionado um na rua 46, bem no centro de NYC, que nos pareceu conveniente: o “Century”. Chegando à cidade nos dirigimos ao hotel, navegando sem dificuldades, onde nos hospedamos, sendo recebidos pela esposa do gerente, que era – pasmem – brasileira ! Nessa época eram raros os brasileiros em NYC e nossa escolha desse hotel, na rua 46 (e mais tarde outro hotel na mesma rua, o “Paramount”) inaugurou para essa zona um caudal de brasileiros que acorreram a NYC após a inauguração da linha para NYC pela VARIG, alguns anos mais tarde. A rua 46 veio a tornar-se uma grande concentração de brasileiros que montaram casas de comércio na mesma, que passaram a ser os principais locais de comprar dos futuros turistas brasileiros. Esse hotel Paramount, onde a VARIG hospedou seus tripulantes e funcionários durante muitos anos, também foi descoberta nossa em 1951.

Quando chegamos ao hotel da rua 46, era fim de semana e o estacionamento ali era permitido. Por economia, já que a garage era cara, deixamos o carro na rua, com a intenção de levá-lo para o estacionamento ao fim do domingo, pois nós não pretendíamos usar o carro em NYC, dando preferência ao bom sistema de transporte urbano, incluindo o “subway”. Aconteceu que esquecemos de guardar o carro, e na segunda feira pela manhã já encontramos uma intimação pendurada no trinco da porta do carro, pela qual nós estaríamos multados em 15 dólares, devendo comparecer perante um determinado juiz, numa data que era 3 ou 4 dias após nossa projetada saída de NYC. Isso nos atrasaria, atrapalhando nosso programa, pelo que fomos à polícia explicar tudo e dizer que pagaríamos os tais 15 dólares sem discussão. O pessoal da polícia examinou nossos papéis, discutiu nosso caso e afinal decidiu que não precisávamos comparecer perante o tal juiz, e nos perdoaram a multa de 15 dólares, com o que ficamos muito satisfeitos e agradecidos.

De NYC fomos a Boston, onde Peixoto queria visitar certa indústria de eletrônicos. Na chegada atravessamos uma enorme ponte sobre grande extensão de água e uma bela paisagem à qual Peixoto não resistiu, filmando-a “d’alto a baixo”. Incontinenti fomos abordados por um carro da polícia que nos levou para interrogatório. Lá, com muita falação e grande dificuldade de entendimento, ficamos sabendo que abaixo da tal ponte que Peixoto filmara estava ancorada boa parte da Esquadra do Atlântico da Marinha Americana, com porta-aviões e tudo o mais. Conseguimos afinal convencer os policiais de que não éramos espiões russos, mas simples e ingênuos brasileiros deslumbrados. Liberaram-nos, devolveram a câmara Paillard-Bolex de Peixoto, mas ficaram com o filme. Essa foi a segunda e última encrenca que tivemos com a polícia norte-americana. O resto da viagem foi tranqüila.

Dali seguimos para o norte até as cataratas do Niágara, que nos encantaram. Seguimos depois, atravessando a fronteira, para o Canadá, em direção a Montreal onde pretendíamos conhecer e visitar o ICAO, que, para quem não sabe, é uma associação de governos de países, que estuda e propõe medidas saneadoras para a aviação civil em geral. Os países membros da organização aceitam ou não as recomendações do ICAO (International Civil Aviation Organization), mas em geral o fazem, pois são justas e adequadas e visam eficiência e segurança das operações.

Visto e revisto o ICAO, descemos pelo interior do Canadá, por excelentes estradas, em direção à fronteira com os USA defronte à cidade de Detroit que cruzamos e seguimos para Indianapolis e Oklahoma, onde ficamos alguns dias visitando a fabulosa CAB (que nos proporcionara as bolsas) que era um órgão do Governo que legislava sobre aviação civil e investigava as causas de acidentes com aviões civis americanos ocorridos em qualquer parte do mundo. A CAB tinha vários investigadores altamente especializados, muito competentes, sendo na minha opinião a melhor organização de investigação de acidentes que já houve. Visitamos demoradamente a organização, onde tive ocasião de aprender alguns métodos de investigação, que tive oportunidade de aplicar, mais tarde, em acidentes nossos ocorridos no Brasil. A CAB fazia um relatório minucioso e altamente especializado da investigação de cada acidente em que atuavam, muito elucidativo, contendo valiosos ensinamentos em todas as áreas aviatórias, que interessavam a todo o mundo aeronáutico. Esses relatórios eram distribuídos para quem quisesse, via correio, e eu inscrevera a RG na “mailing list” da CAB, de forma que passamos a receber cópia de tais relatórios, que eu lia, traduzia e imprimia em português, distribuindo entre o pessoal técnico da RG e também entre concorrentes e colegas tais como a REAL, a CRUZEIRO, VASP, FAB, etc. Houve bons ensinamentos que se tirou das conclusões contidas nesses relatórios.

A CAB, que só investigava as causas de acidentes com aviões, transformou-se, cresceu, e hoje é a NTSB (National Transport Security Board), que investiga acidentes em geral, ocorridos com aviões, trens, navios, enfim, qualquer meio de transporte norte-americano.

A partir de Oklahoma, ingressamos na enorme rodovia 66 que atravessava os USA de leste para oeste, de um oceano a outro, em direção a Los Angeles, onde terminaria nossa viagem após algumas visitas mais. A meio caminho, no entanto, pretendíamos fazer um desvio à direita, subir para o planalto de mais de 2000 metros de altitude, e visitar o Grand Canyon do rio Colorado. Assim o fizemos, gastando alguns dias contemplando aquela deslumbrante maravilha que é esse Canyon, que o rio Colorado cavou através
 de muitos bilhões de anos.

Prosseguimos depois, ainda pela US 66 até Los Angeles onde concluímos nossa viagem de estudos e turismo. Como a Embaixada Brasileira em Washington não recebera a prometida licença para trazermos carros, Peixoto vendeu o nosso magnífico Fordomatic, e, com o dinheiro que nos sobrara, cada um de nós comprou e remeteu via marítima para nossa POA, diversos caixotes, cheios de “bagulhos” que não tínhamos em casa e que fizeram a festa de nossos familiares quando chegaram no porto de nossa cidade, alguns meses depois de nosso retorno, outra vez, pela PAA.

Foi uma viagem muito elucidativa para nós dois, e muita coisa aprendemos para benefício da VARIG e de outras áreas do país. O filme de Peixoto, depois de editado por ele, ficou uma magnífica e completa visão de nossa viagem, com duração de cerca de duas horas. Como continha muita coisa referente ao organizado e modelar trânsito nas cidades e estradas norte-americanas, organizamos nós os dois, uma conferência, num salão da VARIG em POA, para autoridades estaduais de trânsito de nosso estado. Compareceram cerca de 50 pessoas, que ouviram atentamente nossas explanações ilustradas com o filme de Peixoto. Houve melhorias no trânsito de nosso estado, especialmente quanto à sinalização, que nos USA era abundante e esclarecedora. As placas PARE que existem hoje nas esquinas de ruas que cruzam as preferenciais, eu diria que tiveram origem nas americanas oitavadas dizendo categoricamente STOP, que mostramos às autoridades. Infelizmente os brasileiros e especialmente os portoalegrenses, ao invés de PARE, parece que lêem ANDE, pelo que se vê em nossas esquinas em geral.


Um comentário:

  1. Alguém das äntigas¨lembra do Sr Ernani, falecidos em meados dos anos 90? O Conheci no Aeroclube de Belem Novo. Este contava suas histórias dos voos baixos, quando pilota, não lembro bem, se era o electra ou Constelation....lembro das historias do Caravelle...

    ResponderExcluir