terça-feira, 19 de junho de 2012

40) A compra dos aviões Convair – 240

Varig – Salgado Filho, anos 60

Depois de comprar e usar amplamente e com sucesso os aviões “sobra-de-guerra C-46 e C-47, a VARIG dispos-se a entrar na nova era dos aviões fabricados depois da guerra, o que significava um bom passo à frente, com a introdução de trens de pouso triciclos, hélices de passo reversível, cabines pressurizadas e climatizadas, e vôo em maiores altitudes e com maior velocidade, por cima de camadas de mau tempo, evitando eventuais turbulências.

Nessa época (início da década dos anos 1950) a RG não tinha escritório nos USA, mantendo apenas um representante para fins de compra e envio de peças de aviões, um ex-piloto já meio maduro, chamado Donald Cardiff (creio que ele era escocês, e não americano, mas não tenho certeza). Logo após a guerra ele havia comprado um avião e iniciado operações de transporte na costa oeste dos USA, creio que ele mesmo pilotando o avião, mas as coisas não haviam dado certo, ele fechara a empresa e se estabelecera como representante de companhias aéreas na cidade de Montreal, Canadá. A VARIG o conhecera e ele passara a ser seu representante na América do Norte, especialmente nos USA.

Alem de peças, ele havia comprado mais de um avião C-46 para a RG, sendo que um deles ele havia trazido para POA, pilotando sozinho o avião, sem co-piloto ou qualquer outro auxiliar! Na chegada em POA ele havia estacionado o avião no pátio da RG,desligado os motores, descido do avião apesar da ausência de escada, (considerando mais de dois metros de altura que tinha a porta do C-46 em relação ao solo) e simplesmente e à vista de todos, urinado nas rodas do avião, dizendo que isso fazia para esfriar os freios! Era um tipo fora de convenções, o Cardiff! Andando de carro dirigido por ele, a gente ficava arrepiado, pois ele não só não respeitava as leis do trânsito, como sempre arrancava com a segunda marcha. Nunca vi o Cardiff usar a primeira para arrancar!

Esse elemento, que veio a tornar-se um valioso e leal colaborador da VARIG em NYC, descobriu que a Pan American estava vendendo dois de seus Convair 240, em Miami. A PAA tinha uma grande base em MIA, onde ficavam seus CV-240 utilizados nas rotas centro americanas da empresa, os quais estavam agora para serem substituídos por Douglas DC-6B, maiores e mais eficientes. O CV-240 fora lançado em 1948, logo após o fim da 2ª, guerra, sendo um dos primeiros aviões a incorporarem condições de maior segurança no vôo, na indústria aeronáutica pós-guerra, após a recomendação pelo ICAO e pelo FAA, de que aviões de passageiros com dois motores deviam poder voar com plena carga com um só motor funcionando (e o outro em pane), na decolagem. Isso fazia parte das CAR Part 4b (Civil Air Regulations Part 4b) que se espalharam pelo mundo dos fabricante de aviões, passando a ser condição obrigatória.
O Convair-240, que a PAA comprara em 1948, tinha motores fracos para cumprir com essas exigências, mormente nos aeroportos cercados de montanhas que existiam na América Central, onde a PAA operaria com esses aviões. Assim a PAA, com suas possibilidades de tecnologia avançada em MIA, trocou os motores dos CV-240 por outros de maior potência e fez modificações no trem de pouso para que suportasse motores mais pesados.

A VARIG, informada por Cardiff, interessou-se pelos aviões que estavam à venda, e comprou dois dos CV-240 modificados que a PAA tinha no aeroporto de MIA, revisados e em excelente estado de conservação. Essa era uma época de grandes modificações nos padrões aeronáuticos especialmente para a VARIG, que vinha de uma origem muito modesta e provinciana. Seria também que pela primeira vez que nossos pilotos e mecânicos teriam que fazer cursos completos no exterior em função da compra de novos aviões. Como eu, Diretor do Ensino, coube-me a tarefa de ir a Miami tratar com a Pan American do treinamento do pessoal RG e também, aproveitando a ocasião, providenciar a venda para o Brasil dos dois aviões e de algum estoque de peças.

Viajei para Miami pela PAA e lá tratei logo de apresentar-me à chefia da PAA, e traçar um programa de ação visando o treinamento. Eu me havia hospedado num motel defronte à sede da PAA, que estava vazio e me cobrava apenas 2 dólares por dia, pois era verão e por isso fora de temporada em MIA. A VARIG pagava-me 15 dólares por dia para minhas despesas, mas como era fora de temporada tudo era barato e o que eu recebia dava para pagar hotel, comida, e ainda sobrava para alugar um modesto carro Henry J, um modelo relativamente pequeno que a fábrica do famoso jeep militar havia lançado.

(A propósito: Vocês sabem de onde vem a palavra ou nome “jeep” ? Pois vem do seguinte: Durante a 2ª. Guerra os americanos acharam que as tropas espalhadas por quase todo o mundo, de vários países, precisavam de um veículo ágil, leve, robusto, capaz de suportar qualquer terreno, de manutenção fácil e que não fosse muito caro. Projetaram então, os engenheiros, o que se tornou conhecido em todo o mundo aliado com o apelido de veículo GP - de General Purpose, ou uso generalizado. Como o “g”em inglês se pronuncia “gi”, e o “p”, “pi”, o nome passou a ser “gipi”, ou “jeep”. Interessante, não ?).

Voltando a Miami: O Cardiff era uma espécie de tesoureiro da VARIG nos USA e Canadá, nos tempos em que a empresa não tinha escritórios em NYC. Quando a gente precisava de dinheiro, tinha que solicitar a ele, que o enviava pela Western Union, uma organização modelar, muito eficiente. O dinheiro chegava logo em seguida e a gente o apanhava numa das inúmeras agências da organização. Em NYC, num hotel grande em que estávamos uma ocasião, havia um representante da WU em cada andar do hotel.

Tracei com o pessoal da PAA um plano de treinamento para um grupo de pilotos e outro de mecânicos e instrutores da RG, que chegaria de POA num C-46 cargueiro, em breve. Como estava funcionando um curso de “ground school” para pilotos da PAA, integrei-me ao mesmo para conhecer melhor nossos novos aviões. Isso durou cerca de duas semanas e nesse ínterim viria de POA o C-46 com o pessoal.

Quando chegou nosso C-46 fui receber o pessoal da RG no pátio onde mandaram que estacionasse o Curtiss. Conduzi todos para o mesmo hotel onde eu estava e cuidei para que tivessem tudo que necessitassem. Em tempo: enquanto esperava a chegada de nosso pessoal, estudando o Convair, aproximou-se de Miami um terrível furacão que ameaçava destruir tudo. Havia notícias do avanço do furacão em todas as lojas e restaurantes de MIA, e eu acompanhava aquilo, temendo pela segurança de nossos dois CV-240 isolados num canto do enorme aeroporto. Com a aproximação do furacão, todos os aviões deixaram Miami, seguindo para lugares mais ao norte, fora da rota da tempestade. Procurei com o pessoal da PAA alguns pilotos que pudessem ser contratados para levar nossos aviões daquele lugar, mas ninguém consegui. Fiquei, portanto, no hotel “torcendo” para que o tal furacão não danificasse nossos apreciados Convair. Mas afinal o bicho papão desviou-se para o norte, e não passou por Miami. Ainda bem!

Os variguianos fizeram os devidos cursos com pleno sucesso, inclusive treinamento de vôo, podendo assim, algumas semanas mais tarde, levar os aviões para seu novo lar, a VARIG de POA.

Minha tarefa cumprida, antes disso, e fiquei pronto para retornar a POA aproveitando a “carona” de nosso C-46, que voltava cheio de peças. Os motores dos CV-240 tinham um dispositivo que injetava metanol (álcool metílico, extremamente tóxico!) nos cilindros para resfriá-los, no momento em que o piloto estava solicitando plena potência, na decolagem. Com essa medida (automática) o motor desenvolvia cerca de 100 HP a mais, melhorando assim a performance do motor naquele momento crítico. Eu sabia disso, sabia que antes de cada decolagem , nos pátios dos aeroportos, era necessário abastecer um pequeno tanque que o avião possuía, com metanol. Isso significava duas coisas pelo menos: a disponibilidade de metanol nos aeroportos do Brasil, e as expressas recomendações de cuidados com o álcool metílico tão tóxico, que o pessoal que lidasse com o mesmo deveria tomar. Preocupado com isso, escrevi tais recomendações para o pessoal do reabastecimento e, na dúvida se teríamos o tal metanol logo no início das operações com os novos aviões, no Brasil, comprei na PAA um tambor de 200 litros do veneno, e ajudei a que o colocassem dentro do C-46, bem sobre seu centro de gravidade, fortemente amarrado com grossas cordas, pois sabia das condições de turbulência que poderíamos encontrar pelo caminho para POA, especialmente ao longo da América Central, pois teríamos que voar em altitudes não muito elevadas, com nuvens turbulentas.

Mas afinal tudo correu a contento, os dois aviões chegaram a POA e foram logo colocados em serviço, e bem aproveitados por alguns anos. Entrementes nossas rivais, a REAL e a CRUZEIRO, haviam encomendado na fábrica aviões Convair mais modernos do que os nossos, pois seriam fabricados vários anos depois dos nossos e, portanto, incorporando aperfeiçoamentos importantes que haviam sido desenvolvidos ao longo dos anos, à medida que a indústria aeronáutica progredia, depois do fim da guerra. O sistema de pressurização e climatização de nossos aviões, assim, projetado e fabricado em 1948 ou 1949, quando essa coisa estava recém engatinhando, pois durante a guerra não se fabricaram aviões pressurizados, era deficiente e bastante inferior ao que estava instalado nos novos 340 e 440 de nossas concorrentes. Mas “ al fin y al cabo” a coisa funcionou a contento, pois faltavam poucos anos para tudo tomar outros rumos, desconhecidos e imprevisíveis.

Apenas para encerrar o assunto Convair: Quando os dois aviões chegaram a POA, a nova pista de concreto do aeroporto de POA não estava pronta. Por isso os aviões pousaram na pista da Base Aérea de Canoas, onde operaram, por algum tempo, até que a nova pista estivesse terminada. Quando isso aconteceu, Ruben Berta convidou várias autoridades aeronáuticas para virem do Rio a POA, num CV-240 da VARIG, para a inauguração da pista. A Torre de Controle de POA recebeu instruções para não deixar qualquer outro avião pousar na nova pista, até que o Convair da RG com autoridades a bordo o fizesse. O Presidente da REAL, na época nossa mais ferrenha rival, despachou às pressas um Convair 340, de SAO para POA, com a intenção de que o avião da REAL chegasse primeiro a POA, assim inaugurando a pista, frustrando a “festa” da RG. O Convair da REAL chegou mesmo primeiro, mas a Torre não permitiu o pouso, contrariando as intenções do piloto, e obrigando-o a pousar na Base Aérea.

Pouco depois disso, chega sobre POA o avião da VARIG, com Berta e autoridades. O piloto fez umas voltas sobre o aeroporto, para que contemplassem a nova pista, e preparou-se para pousar, inaugurando-a como estava previsto. O CV-240, porem, tinha um sistema pneumático que freava suas rodas com ar comprimido, caso o sistema normal hidráulico falhasse. Fazia parte da lista de cheques antes do pouso, testar esse equipamento acionando um controle que canalizava ar comprimido para os freios das rodas, imobilizando-as. Depois esse controle devia ser colocado na posição que deixava o ar escapar dos freios, liberando as rodas para o pouso. Pois o piloto esqueceu de fazer isso, pousando na nova pista com as rodas do avião travadas! Houve uma desaceleração brusca do avião, que provocou preocupação entre os passageiros, que se depararam com seu avião imobilizado no meio da pista, com os pneus de ambas as rodas estourados! Foi preciso providenciar um ônibus para transportar os desencantados passageiros, inclusive e principalmente Ruben Berta, que via assim seus esforços para coroar com a presença de altas autoridades aquilo que fora uma de suas grandes ambições e preocupações, ou seja, equipar o aeroporto de POA com uma pista grande e pavimentada.

Outra coisa importante que ocorreu com a vinda dos CV-240 para a VARIG foi a seguinte: A empresa desejava operar os aviões no aeroporto Santos Dumont, no RIO, por razões de preferência do público e promocionais. Porem o DAC não aprovava essa operação na exígua pista do Santos Dumont com os novos aviões, a não ser que a empresa provasse que a performance do avião era satisfatória, de acordo com as novas recomendações do ICAO, naquelas condições e decolando com peso máximo. Nós não tínhamos como provar isso, pois o manual com curvas de performance do CV-240 referia-se ao avião original, com os motores mais fracos, antes da modificação feita pela PAA. Era preciso, então, elaborar novas curvas de performance baseadas em experiências reais feitas com o avião. Tocou-me executar essa difícil tarefa, por razões que eu não saberia explicar.

Eu tinha no Ensino dois colaboradores competentes e dispostos a tudo. Eram o Cmte. Schittini, solo no avião, e o Prof. Rodeck, engenheiro e navegador, com larga experiência. Convoquei-os para a tarefa, o que prontamente aceitaram. Enquanto Schittini aprontava um avião com sacos de areia para ficar com peso máximo, abastecido e com co-piloto, eu e Rodeck íamos até a pista, para demarcá-la com a dimensão da do Santos Dumont, ou seja, cerca de 1000 metros de comprimento. Nesse ponto fiquei eu, com uma bandeira na mão. Rodeck foi para o fim da pista, com um teodolito. Schittini então foi para a cabeceira da pista encurtada, acelerou os motores ao máximo e partiu com o Convair até atingir a V1(velocidade de decisão, na qual o piloto decide se vai ou fica, no caso de pane de motor). Nessa velocidade Schittini cortou o motor crítico e “embandeirou” sua hélice, continuando a corrida até atingir a V2 (velocidade de decolagem) na qual o avião saiu da pista e subiu, monomotor. Ao passar no ponto onde eu me encontrava (simulando a pista do Santos Dumont) levantei a bandeira que tinha, com o que Rodeck mediu a altura em que o avião estava, ao fim da pista simulada do Santos Dumont. Fizemos essa prova duas ou três vezes, depois uma de aceleração e parada dentro da “pista” (na qual estouraram os 4 pneus do avião!).

Os resultados dessas provas foram excelentes, tendo o avião provado que superava as exigências do DAC. Assim, elaboramos novas curvas de performance, e eu fui ao RIO para mostrar às autoridades que o avião podia operar no Santos Dumont. Isso foi feito, e o avião aprovado. Creio que foi essa a única vez que se fez tais provas práticas com aviões no Brasil. Mais um pioneirismo a ser creditado à VARIG!

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