sábado, 15 de fevereiro de 2014

68) O PRIMEIRO VÔO



(Por Rubens A R Bordini, fevereiro de 2014)

Todos os seres vivos, por uma razão ou outra, precisam locomover-se. Essa locomoção ocorre eventualmente em um dos três ambientes existentes em nosso planeta: A terra sólida propriamente dita, a camada de ar que envolve a Terra, ou atmosfera, e as áreas cobertas por água (rios, lagos, oceanos). Para tal locomoção, os seres vivos utilizam respectivamente pernas ou pseudopodes, asas e nadadeiras. Os seres vivos mais primitivos têm como motivação para seu deslocamento, principalmente, a alimentação ou a procriação.

Uma vaca, solta numa campina, tem condições físicas para locomover-se, mas basicamente só o faz para procurar uma área de melhor pasto. E assim acontece em geral com todos os animais. Com os seres humanos, porém, é diferente: Com sua inteligência e imaginação, através de muitos milênios, os humanos rodearam-se progressivamente de muitos outros interesses em sua vida, além dos básicos, alimentação e procriação, que os levaram, através dos tempos, a invadir e utilizar outro ambiente para sua locomoção, além da terra firme, as superfícies cobertas por águas. Assim o homem imaginou e construiu canoas primitivas que evoluíram para todas as formas modernas de embarcações que se conhecem hoje.

O terceiro ambiente q ue envolve a Terra, a atmosfera, foi muito mais difícil de conquistar; o homem podia ver que as aves navegavam no ar que as rodeava, mas não podia entender como isso era possível, até que, lenta e progressivamente, a aerodinâmica primitiva passou a ser entendida e aplicada na construção de balões, depois dirigíveis e finalmente, já bem mais avançada, aeronaves mais pesadas do que o ar.

Esse desenvolvimento tecnológico coincidia e estimulava a predestinação humana para o movimento, de tal forma que, à medida que evoluíam os meios de transporte, mais e mais a vida humana dependia de deslocamentos humanos, que atendiam às crescentes necessidades dos homens e suas famílias em qualquer campo sociológico, ou econômico, ou o que seja.

Muito naturalmente, a observação do voo das aves levou os homens a procurarem imitá-las, para o deslocamento num meio sem obstáculos, e com a rapidez que sempre caracterizou os anseios humanos, como se tivessem plena consciência de sua curta existência, da ausência da imortalidade e, portanto, da importância de realizar qualquer coisa no menor tempo possível. No entanto, poucos, muito poucos foram aqueles que observaram o voo das aves com olhos de pesquisadores, com o fito de eventualmente imitá-las. Entre eles figura nosso genial compatriota, Santos-Dumont, que transformou os balões esféricos que eram impulsionados pelo vento e portanto não serviam como meios de transporte, em naves alongadas providas de motor que as impulsionava e de lemes que as dirigiam; por isso foram chamadas de “dirigíveis”.

Como se sabe, S-D fabricou uma aeronave que levou o nome de 14 Bis, com a qual voou em Paris, França, perante grande assistência de admiradores. Seria ele o primeiro homem a voar? Do outro lado do Atlântico, porém, havia um par de irmãos, os Wright, que tinham uma fábrica de bicicletas e que também se interessavam pela possibilidade de conquistar o ar. Eles construíram uma aeronave que voou catapultada descendo uma colina, sem quaisquer testemunhas, numa praia deserta. Hoje, uma parte da humanidade acha que S-D foi o inventor do voo, ao passo que outra parte de nossos conterrâneos acha que os heróis foram os irmãos Wright.

Como há essa dualidade de opiniões sobre quem voou primeiro, prefiro crer que nenhum deles foi o primeiro, pois outro já voara muito tempo antes. Refiro-me ao arquiteto e “factótum” cretense Dédalo, que segundo a historinha dessa época, teria voado como uma ave.

A coisa teria sido o seguinte: Havia, muito antes de Cristo, nas terras banhadas pelo mar Egeu, um reinado chamado Creta, que tinha um rei chamado Minos, casado com a rainha Parsifae. O rei Minos, que era muito desconfiado, um belo dia achou que seu reinado ficaria mais seguro se pudesse contar com o apoio dos deuses. Assim, pediu a Poseidon, deus dos mares, que lhe enviasse um belo touro todo branco, o qual seria sacrificado em homenagem aos deuses. Seu pedido foi atendido, e “presto”, apareceu na porta do palácio o tal touro belíssimo. Ao ver o belo touro, Minos decidiu não sacrificá-lo devido à sua beleza. Afrodite, que andava por ali e era muito metida, ao saber da decisão de Minos, ficou contrariada e decidiu punir o rei, fazendo com que a rainha se apaixonasse perdidamente pelo tal touro.

Afrodite, como se sabe, era muito versada em assuntos ligados ao amor e ao sexo; por isso, a macumba feita com a rainha deu muito certo, fazendo com que esta, num assomo de tesão, pedisse ao arquiteto e artesão Dédalo, ajudado por seu filho Ícaro, que construíssem um simulacro de vaca, no qual ela, rainha, poderia esconder-se, para que pudesse copular com o tal touro galã. E assim foi feito, e dessa cópula nasceu uma criatura estranha, meio homem - meio touro, que recebeu o nome de Minotauro, e que se tornou, com o passar do tempo, um monstro devorador de seres humanos, o que era sua ração de sobrevivência que o rei Minos, a contragosto, tinha que de proporcionar-lhe. A coisa chegou a tal ponto que Minos, preocupado com a redução demográfica de seu país, decidiu dar um “chega prá lá” na fome do bicho. Só que, por modéstia ou outra razão qualquer, ao invés de transformar o Minotauro em Mini-guizado ou Mini-xarque, incubiu novamente o faz-tudo Dédalo de construir – não uma modesta cadeia dessas que aparecem nos filmes “western” com o nome “jail”, mas sim uma imensa e cara construção que foi chamada de “Labirinto” e que consistia de uma grande quantidade de corredores e salas, dispostos de tal maneira que era impossível a qualquer vivente achar a saída. Para dentro do Labirinto foi empurrado o Minotauro, que por lá ficou por não saber como sair. O curioso é que o tal bicho-papão deveria ficar dentro do Labirinto para sempre, tendo portanto que ser alimentado outra vez com carne humana, donde se conclui que essa solução não solucionava coisa alguma.

As coisas estavam nesse pé, com o Minotauro comendo sua ração de, preferencialmente, jovens de carne macia, quando apareceu por aquelas bandas um xerife metido a John Wayne, chamado Teseu, que se dispunha, agora sim, a transformar o indesejável Minotauro em algo útil como, por exemplo, guisado para vender para a cadeia Mac Donald que talvez já andasse por lá.

E dito e feito: Teseu com muita tesão entrou na Labirinto com a conivência de Dédalo e seu filho Ícaro, que lhe ensinaram o macete para sair da arapuca, liquidou com o Minotauro e sumiu, pois não se ouviu mais falar dele.

O rei Minos quando soube que haviam liquidado o Minotauro, ficou pê da vida com Dédalo e seu filho, não se sabe por que, e mandou prendê-los numa ilha deserta, uma das centenas de ilhas que existem no Mar Egeu. Dédalo, que não era nem burro nem preguiçoso, começou a pensar sobre como poderiam sair da ilha; Nadando não era viável, pois nenhum dos dois sabia nadar; Não havia qualquer embarcação que pudessem usar. Em sua profunda meditação, Dédalo teve sua atenção voltada para algumas aves de porte – talvez urubus? – que avançavam sem grande esforço por sobre o mar, com destino certamente conhecido por elas. Notou também que as aves agitavam os membros anteriores, que corresponderiam aos braços de um homem, e que se chamavam asas; viu também que essas asas eram revestidas de penas, cuja finalidade seria, provavelmente, facilitar o deslocamento do ar sobre as mesmas.

Assim, o esclarecido arquiteto decidiu fazer uma experiência aérea. Com o concurso, a contragosto, de alguns urubus, arrecadou penas grandes em quantidade suficiente para revestir seus braços e os de Ícaro; colou as penas com cera (de abelhas?) e, como bom piloto de provas, subiu a um rochedo para lançar-se ao ar, pois notara que era necessário ter uma certa velocidade para iniciar o voo, com a devida sustentação. Dédalo agitou os braços cobertos de penas, e de uma maneira ou de outra conseguiu sustentação para um voar hesitante e primitivo, mas afinal dominou as dificuldades e pôde fazer algumas evoluções, subir e descer, curva à esquerda e à direita, chegando à conclusão que o voo era possível e seguro. Tinha agora que instruir Ícaro, para que ambos pudessem sair da ilha.

Dédalo, mesmo sem o saber, já estava sendo pioneiro em algumas coisas relativas ao voo de alguém não-pássaro: Fora o primeiro a observar o voo das aves, tirando daí suas sábias conclusões e estabelecendo pela primeira vez algumas regras básicas da primitiva aerodinâmica. Imaginara e realizara o primeiro voo experimental da história, e agora estava prestes a tornar-se o primeiro instrutor de voo, inaugurando assim essa nobre profissão que tão útil seria muitos anos mais tarde.

Pois bem: Dédalo preparou Ícaro para essa nova experiência, instruindo-o minuciosamente em como agir e, numa observação complementar, recomendando expressamente que não subisse muito, pois chegaria perto demais do Sol, o que poderia derreter a cera das penas. Ícaro decolou sem problemas, fez diversas evoluções, e extasiou-se com o voo e a visão que tinha lá de cima. Esquecendo a recomendação de seu pai e instrutor, subiu demais e com isso suas penas soltaram-se dos braços, sendo a cera derretida pelo calor do Sol. Sem apelação, o jovem e pretenso aviador precipitou-se nas águas do Mar Egeu, morrendo afogado, ante os olhos consternados de Dédalo, que testemunhou assim, a invenção de algo que, graças à indisciplina de Ícaro havia de repetir-se muitas vezes na aviação do futuro: O acidente de avião devido a erro do piloto. Pode-se dizer que Ícaro inventou o acidente!

Baseado nessa historinha, que com realismo pode ser considerada uma lenda, das diversas que os gregos antigos tinham à farta, prefiro dizer que o inventor do voo humano foi Dédalo e não um dos pesquisadores do século 20, sem que isso diminua o mérito de um Santos-Dumont ou de um ou ambos dos Wright. Claro, eles construíram a máquina a partir das quais o mundo está hoje cheio de milhares de versões modernas e eficientes, realizando aquela predestinação humana de locomover-se.

Muito bem: E o Labirinto? Aquela construção imensa e desnecessária pós-Teseu, o que fazer com ela? Ninguém sabia qual poderia ser seu destino, até que novamente Dédalo, muito sabido como sabemos, baseado em informações que colhera de viajantes, veio com a solução do problema: Vamos transformar o Labirinto no que se chama hoje “shopping Center”, ou seja um lugar para onde vão centenas ou milhares de pessoas com um determinado fito, ou muitas outras sem fito algum. Seria necessário, porém, adaptar a arapuca, pois não tinha teto, nem instalações sanitárias, nem portas decentes. Era preciso, também, colocar por todas as partes placas sinalizadoras com dizeres esclarecedores, tais como “SAIDA, EXIT, SALIDA, SORTIE”, etc., sem o que os frequentadores do futuro Shopping correriam o risco de por lá ficarem para sempre.

E com isso tudo, estamos conversados! “Si non é vero, é bene trovatto !” (espero que meu italiano esteja correto, no que tenho minhas dúvidas!)



5 comentários:

  1. Meu querido e saudoso Mestre de Navegação Aérea, que saudades do senhor.
    Me delicío "ouvindo" suas histórias.
    Exelente!!
    Quando leio "vejo" o senhor sentado á frente de nossa turma ( Segundo CAA ).

    Schumann

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    1. Caro Schumann: desculpe o atraso da resposta. Muito obrigado pelos comentários e pela gentilesa. Saludos, meu amigo.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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